Centro Histórico de Cruzeta

Centro Histórico de Cruzeta
Fotografia do Centro Histórico de Cruzeta tirada em meado dos anos 1960

segunda-feira, 28 de março de 2011

PROBLEMATIZANDO O CAMPO DA EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NO MUNICÍPIO DE CRUZETA/RN


Quando propomos desenvolver no município de Cruzeta uma iniciativa educativa que levasse em consideração a educação patrimonial dos indivíduos, em nosso caso, estudantes de nível médio e fundamental com faixas etárias entre os 13 e 21 anos, tínhamos como principal objetivo a formação cidadã destes sujeitos numa perspectiva orientada para a construção do conhecimento e do protagonismo infanto-juvenil. A relevância da proposta fundamentou-se na extrema necessidade de formar nestes indivíduos uma consciência crítica e inquietante para a realidade bastante desanimadora da situação verificada naquilo que entendemos como Patrimônio histórico-cultural do município de Cruzeta. 
Oficina de Educação Patrimonial
 Como instigar nestes adolescentes e jovens o interesse por uma questão até então tão superficialmente trabalhada em sala de aula ou mal disseminada pelos circuitos educativo-escolares? Como insuflar no pensamento crítico dos estudantes o despertar para uma ação problemática que tão pouco tem significado para uma comunidade que aprendeu no decorrer de sua história a não atribuir valor significativo à preservação de seu patrimônio cultural? Ou para melhor formular a questão, como compreender a partir de uma proposta de Educação Patrimonial o silêncio que tem pairado sobre o município de Cruzeta a cerca da preservação de seu Patrimônio Cultural que tem levado a uma situação de apatia desta população com relação a estes bens e como conseqüência disso uma contínua destruição e desagregação destes?
Estas são questões que demandam uma pesquisa mais apurada e qualitativa para melhor ilustra-la, visto que, um problema desta natureza nos remete a uma análise histórica da situação. É verdade que ao longo de muitas gerações algumas vozes se ergueram sobranceiras para chamar a atenção da comunidade para a constatação desta realidade, mas não ainda o suficiente para irromper a “ignorância cultural” do poder público municipal e assim, desperta-lo para a tomada de alguma solução mais cabível. A polêmica levantada na década de 80 a cerca do dilema “Cruzeta, a cidade do já teve”, marcou um período de intensa disputa entre poder público e alguns indivíduos que passaram a assumir para si a consciência de defensores e guardiões da cultura local. São eles na maioria professores, mestres do saber e educadores em geral, ou simplesmente cidadãos comuns que percebendo o relativo desaparecimento e madorna de muitas manifestações culturais da cidade passaram a reclamar dos dirigentes e representantes políticos locais alguma iniciativa salvaguardora.

O pouco caso dado pelo poder público a esta circunstância preocupante trouxe uma inconformidade sempre presente entre os dirigentes públicos e os “defensores da arte e da cultura local” mais combativos, estes últimos entendidos pelos primeiros como “pessoas problemáticas” e de “difícil relacionamento” e, portanto, “pessoas perigosas” que deviam manter-se sempre afastadas e vigiadas sob custódia de perseguição política já que munidas de uma visão crítica de sua realidade utilizavam-se de diversos meios para influenciar seus concidadãos e insuflar-lhes a revolta e a oposição (na maioria das vezes a própria palavra “nas esquinas, bares e praças públicas” ou mesmo jornais e folhetos com edições aleatórias, quase nunca patrocinados pelo governo, mas, viabilizados com recursos próprios e/ou de terceiros).
Este ponto nos direciona para a análise de uma outra circunstância permeável que ainda se encontra bastante presente no município de Cruzeta. Ela reflete a visão, ou pelo menos o ponto de vista predominante que tingiu a tônica desta altercação desde, pelo menos o período que começou a surgir a questão polêmica apontada acima. Neste ponto, é apropriado esclarecer que, quando a polêmica surgiu na década de 80 ela valeu-se apenas de algumas situações aderentes a vida cotidiana da comunidade, mas no passar do tempo foi assumindo conotações predominantemente simbólicas quando esta passou a integrar um outro dilema que hoje se encontra bastante difundido na comunidade local, qual seja o de Cruzeta: uma cidade sem história.
Vista panorâmica do Centro Histórico de Cruzeta

É de praxe encontrar no município pessoas que ainda defendem a idéia, e estas a maioria dentre aqueles que mantêm uma visão crítica da cultura local, de que o poder público municipal “não se interessa por cultural” ou de que político tal “não tem cultura” para assumir algum cargo público, e, portanto, não está capacitado para atender as necessidades culturais da população sob o pretexto de não entendê-la, de não compreender a sua natureza e anseios. Esta visão põe em conflito a relação entre políticos locais e intelectuais, aqui entendidos como indivíduos que possuem a capacidade de conceber criticamente sua realidade e de opinar livremente sobre ela.
A dissidência que se observa, muitas vezes, entre estes dois grupos de indivíduos reflete um ponto de vista autoritário e personalístico de muitos políticos locais ao idealizar a ação política como uma atitude partidária e/ou pessoal, excluindo de sua participação ativa a parcela maior da população interessada em opinar e resolver os problemas que interferem diretamente em sua vida social atribuindo a esta um papel secundário e pouco expressivo, ou mesmo “demonizando” aqueles indivíduos mais resistentes ao sistema. Este tipo de atitude tem alimentado a idéia de que à população cabe apenas o papel de escolher seus representantes e esperar passivamente por suas ações benfeitoras, o que tem contribuído para a fundamentação de um processo internalizante desmunidor de toda e qualquer motivação acionária coletiva que vise auferir benefícios comuns à comunidade.
É aí onde entra o ponto X da questão. Se pouca conta tem demonstrado o poder público aos bens culturais que ainda nos restam na comunidade, teremos que esperar de braços cruzados por uma ação política que ainda nem sequer chegou de forma consistente à boca de nossos representantes?
Sim. Esta tem sido a resposta predominante durante sucessivas gerações de cidadãos e munícipes que tem passado por nossa cidade, pois quase nada ainda foi feito de forma efetiva por parte da comunidade para garantir a continuidade e preservação de nosso Patrimônio Cultural durante este tempo de nossa história. Nenhum espaço de memória com a devida condição de acessibilidade e organização foi erguido até hoje, nenhum arquivo público que podesse salvaguardar os documentos de nossa experiência histórica foi edificado, pelo contrário, é sabido o caso indiscriminado de descartes feitos com os documentos provenientes da Prefeitura Municipal que também são de direito público; nenhuma política pública que vise à permanência de nossas tradições populares e que promovam as manifestações de nosso folclore ou de nossos mestres da cultura popular alcançou interesse público.
Se urge na cidade a idéia de que somos “um povo sem história”, e lê-se aqui também sem memória, este juízo tem de fato, em que se fundamentar. É claro que não podemos ser injustos a ponto de nos esquecermos de pagarmos um tributo àqueles cidadãos que mobilizando os recursos disponíveis ao seu alcance também deram sua elevada contribuição à construção de nossa história. E estes foram de fato muitos: donas de casa, educadores, homens públicos, pescadores, artistas populares, agricultores, artesãos, médicos, benzedeiras, religiosos, dentre outros. Todos contribuíram de sua maneira para a construção do que somos hoje, ainda que inconsciente sem mesmo receber o devido reconhecimento geral da comunidade, mesmo que trabalhando no silêncio obstinado de seu cotidiano.
Fica, no entanto este questionamento: estamos caminhando para uma idade centenária sem que o próprio povo se encontre nela, sem que o passado nos sirva de vereda para o futuro, sem referências de um futuro melhor, pois o pouco que conhecemos de nossa história não tem sido suficiente para garantirmos um futuro realmente promissor? Esta questão seria talvez tratada sem a devida acuidade que merece se ela se fizesse apenas uma afirmação categórica. É impossível se acreditar hoje que possa existir uma sociedade sem suas referências culturais, sem um passado que lhe sirva como um horizonte para o porvir. O que estou tentando elucidar é que quanto mais abjuramos este passado, quanto mais insistimos em caminhar sem dá-lhe o devido respeito menos chances teremos de acertar no futuro. 
Vista parcial do Centro Histórico de Cruzeta hoje

O Patrimônio Cultural é nosso espelho pelo qual refletimos as nossas lutas e conquistas, os nossos anseios mais íntimos, a nossa maneira própria de viver em comunidade, de encontrar meios de solucionar nossos problemas, de se apropriar dos recursos que a natureza nos confere e usá-los em nosso benefício, de comunicar ao mundo nossa experiência histórica traduzida em símbolos e representações. Sem a adequada conservação e preservação deste “arsenal simbólico” não pode um povo projetar-se no futuro e garantir a continuidade coesa de seu grupo. A coesão social depende deste vínculo sólido de identidade.
Foi a guisa desta problematização que nasceu o Projeto Patrimônio, memória e educação: descobrindo nossos tesouros de identidades executado entre os meses de Julho e Setembro de 2010 no município de Cruzeta com patrocínio do Banco do Nordeste e o BNDES através do Programa BNB de Cultura Edição 2010. 

O contexto que tentamos brevemente ilustrar acima esclarece um pouco a circunstância psicosocial que encontramos entre os estudantes ao desenvolvermos as oficinas de Educação Patrimonial como parte integrante do projeto. Ao propormos situações que levassem os participantes a incorrerem um novo olhar sobre sua cidade através de caminhadas e visitas ao Centro Histórico de Cruzeta, como também da observação e da pesquisa, era este contato mais direto e ainda uma visão mais crítica e reflexiva sobre a situação do Patrimônio Cultural do município que almejávamos alcançar. Este procedimento valeu-se da capacidade da sensibilização pessoal como força capaz de despertar nos indivíduos o interesse em tornar-se parte do problema e assim vir a construir soluções para ele. 
Caminhada pelo Centro Histórico do município

Como arcabouço para as oficinas foram forjados instrumentos pedagógicos que serviram de meios práticos para facilitar a implementação da metodologia da Educação Patrimonial tal como nos orienta Parreira Horta em seu Guia Básico da Educação Patrimonial (1999). A princípio, circunscrevemos uma área geográfica que passamos a intitulá-la previamente de Centro ou Sítio Histórico de Cruzeta e em seguida foi realizada uma caminhada pela área para constatação e mapeamento prévio das principais evidenciais do Patrimônio Histórico-cultural possível de ser constatado na extensão. Logo depois foi elaborado um mapa elementar como guia de visitação para servir de roteiro aos grupos de pesquisadores que seriam formados durante as oficinas. 

Como arcabouço para as oficinas foram forjados instrumentos pedagógicos que serviram de meios práticos para facilitar a implementação da metodologia da Educação Patrimonial tal como nos orienta Parreira Horta em seu Guia Básico da Educação Patrimonial (1999). A princípio, circunscrevemos uma área geográfica que passamos a intitulá-la previamente de Centro ou Sítio Histórico de Cruzeta e em seguida foi realizada uma caminhada pela área para constatação e mapeamento prévio das principais evidenciais do Patrimônio Histórico-cultural possível de ser constatado na extensão. Logo depois foi elaborado um mapa elementar como guia de visitação para servir de roteiro aos grupos de pesquisadores que seriam formados durante as oficinas. 
Visita a Casa do Fundador da Cidade
 É importante elucidar a partir deste ponto que quando nos referirmos a Patrimônio Histórico-cultural, ou mesmo a Patrimônio Cultural, estamos aludindo as referências culturais tanto de natureza material quanto imaterial consagradas ou não no município de Cruzeta. É sabido de nossa parte que este discurso tem incorrido em outras discussões problematizantes, pois a noção que mais se defende hoje de Patrimônio Cultural é a de que este deve referir-se aos conjuntos de bens culturais que possui significativa expressão para o grupo ou comunidade que o produziu ou o reconhece como tal. Este ponto de vista reflete a visão de um de nossos alunos pesquisadores do Centro Histórico ao sugerir que as oficinas deveriam ter sido “trabalhadas de forma que considerassem os pontos mais importantes para a cidade como: prefeitura, Casa de Cultura e etc., porque teve algumas casas não tão conhecidas”. 

Evidentemente que fazia parte dos objetivos das oficinas propiciarem aos seus participantes uma visão mais ampliada de Patrimônio Cultural e que ao propormos uma caminhada pelo Centro Histórico de Cruzeta intencionávamos realizar um “retorno ao passado” através da leitura e observação de suas “reminiscências históricas”. Ao escrever a expressão “algumas casas não tão conhecidas” provavelmente este partícipe queria se referir às construções e edificações localizadas no Centro Histórico pesquisado que para seu grupo social já não possuía importância do ponto de vista da história ou das relações sociais e, portanto, representavam apenas vínculos tênues com o passado, visto que estas deveriam está isentas das ações preservacionistas do seu Patrimônio Cultural. Mas é por meio desta verificação que constatamos a importância de se educar o cidadão para a valorização e reconhecimento de seus bens culturais. Assim, surge dentro deste espaço uma outra questão: por quê determinados elementos culturais são comumente selecionados pelos grupos sociais e outros postos de lado? 

Para estabelecermos alguma resposta é necessário antes de tudo sabermos que toda cultura é uma construção histórico-social. Como interpreta Ruth Benedict no seu livro O crisântemo e a espada, a cultura pode ser entendida como uma lente através da qual o homem percebe o mundo em que vive. A capacidade do homem em apreender o significado das coisas e se apropriar delas “depende de um aprendizado e este consiste na cópia de padrões que fazem parte da herança cultural do grupo”. (Laraia. 2008, p.71) Neste rol do significado de herança cultural também se insere os “arquétipos mentais” que são compartilhados por um determinado grupo social. 

Laraia interpretando Kroeber diria que o homem “é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam” (Idem. p.45) Desse modo, analisando a realidade posta em discussão, consideramos que ao longo de sua história muitos cruzetenses aprenderam a aceitar do seu grupo social através de múltiplas formas de transmissão de conhecimentos, cujas principais são sem dúvidas o ensino formal escolar e a oralidade, que a Casa de Joaquim José de Medeiros, reconhecida na comunidade como a primeira residência erguida para servir de moradia ao “fundador da cidade” e sua família é mais importante do ponto de vista da história, por exemplo, que o casebre construído de taipal da rezadeira Dona Salvina, uma das mais antigas da cidade, mas que hoje encontra-se em ruínas. Não há dúvidas de que existam aí alguns critérios implícitos que justificam esta seleção, pois como revela Peter Burke (2000) ao interpretar Halbwachs (1925) “são os indivíduos que lembram, no sentido literal, físico, mas são os grupos sociais que determinam o que é “memorável”, e também como será lembrado” e ainda que “as memórias são influenciadas pela organização social de transmissão e os diferentes meios de comunicação empregados”. 
Casa do "fundador da cidade" de Cruzeta localizada no Centro Histórico
 Para melhor mencionar o problema o primeiro critério que podemos explicitar é o conceito de história e de sujeito histórico predominante no município e compartilhado pela maioria da população que conferi a apenas certos indivíduos, entre estes, políticos, médicos, juristas, homens de negócios e religiosos, para citar apenas alguns, isto é, a elite político-econômica local, as honras de “fazedores da história”. Esta percepção de sujeito histórico ilustra bem a “concepção positivista de história” que se pauta na narrativa dos “grandes homens e seus grandes feitos” e numa proeminência maior aos aspectos políticos e econômicos do local, relegando como histórico os fatos da vida cotidiana ou imaginária dos indivíduos comuns. Ora, hoje se entende que tudo que nos serve para compreender os diversos aspectos de determinado grupo ou sociedade é passível de se tornar historia, basta apenas que um historiador se interesse por eles e lhes dê “sopro de vida”. 

Um segundo critério que nos orienta na análise da questão apontada acima é que a memória se constitui num campo de disputa política ou de injunção do poder. O fato de a população cruzetense considerar como histórica a Casa do “fundador da cidade”, e portanto, um “monumento” que deve ser preservado para as futuras gerações e excluir desta concepção a casa de uma rezadeira, ilustra bem a força política que prevaleceu. Não é nosso objetivo neste estudo avaliar as vias por onde este domínio percorreu e se estabeleceu, nem os artifícios que se utilizou para ganhar implemento e legitimidade. O que podemos verificar é que tanto o “fundador da cidade” quanto uma de suas rezadeiras mais notável participaram de formas diferenciadas de sua cultura cada um seguindo a “lógica” de seu grupo social e ambos contribuíram significativamente para a construção da história local. 
Casa de taipa da Rezadeira Dona Salvina, localizada na periferia da cidade

Mas ao ser seletiva, a memória social também é excludente. Assim, ao pautar-se na concepção “oficial de história” ela acaba por desfavorecer os sujeitos sociais que se estabeleceram em suas margens “com experiências de vida limitadas às dimensões do cotidiano” (Vasconcelos; Júnior. 2003 p.31) e a enaltecer aqueles indivíduos que se destacaram e impuseram suas habilidades no campo político e social ao arrogarem algum prestígio notório junto ao grupo social que se constituiu como “dominante”. Como explicita Michael Pollak, “a memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes (...) A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis”. (1989, p. 9) Visto desse modo, a história se fundamenta neste campo de disputa pelo estabelecimento da memória de um grupo social sobre as reminiscências de outros. Portanto, o Patrimônio Cultural de uma sociedade precisa ser entendido como um espaço de poder por onde os diversos interesses de seus grupos sociais convergem e circulam. 

A discussão fomentada acima serve para esboçar o ardiloso campo de atuação da Educação Patrimonial no município de Cruzeta já que dentre os nossos estudantes oficineiros foram possíveis identificar adolescentes e jovens provenientes dos mais variados grupos sociais estabelecidos na comunidade. Desse problema surge uma outra questão não menos importante: como, então, tornar o campo de atuação da Educação Patrimonial uma prática inclusiva e plural?
Este questionamento torna-se fundamental à medida que a prática da Educação Patrimonial precisa ser uma ação inclusiva para que se obtenham resultados mais frutuosos frente à diversidade de sua demanda social. Isto acontece porque os diversos sujeitos que integram o quadro do público assistido são provenientes das mais diferentes origens sociais e, portanto, tendem a compartilhar de noções e visões de mundo distintas. Assim, um adolescente que fora educado no círculo de uma família humilde sem qualquer projeção pública, certamente se sentirá mais familiarizado com o modo de ver o mundo pertencente a seu grupo social, isto é ele se sentirá apto a compartilhar dos mesmos significados e representações de mundo do meio social em que faz parte. Este entendimento do comportamento social nos orienta na tomada de alguns procedimentos que consideramos essencialmente importantes a começar pelo o que entendemos como Patrimônio Cultural Cruzetense. 
Ao forjamos a noção de Patrimônio Cultural Cruzetense como sendo o conjunto de bens culturais materiais e imateriais que servem de referências históricas e indentitárias para os diversos grupos sociais que compõem o município de Cruzeta intencionávamos incluir dentro deste arsenal uma diversidade de outros bens não consagrados na comunidade, mas que se constituíam parte do estoque cultural daqueles menos privilegiados. Esta postura refletiu a nossa preocupação em perpetrar nos alunos participantes do projeto o sentimento de sensibilização com as manifestações culturais de seu grupo através de um procedimento teórico metodológico que instigasse em cada aluno/pesquisador o interesse em conhecer melhor as evidências culturais existentes em sua localidade e assim, contribuir para um processo mais amplo de inclusão e de auto-estima social pensado a partir da valorização dos mais variados aspectos culturais que moldam e expressam a identidade do povo cruzetense.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ATAÍDES, Jézus Marco; MACHADO, Laís Aparecida; SOUZA, Marcos André Torres. Cuidando do Patrimônio Cultural. Goiânia/GO: UCG, 1997.
BENEDICTIS, Ruth. O crisântemo e a espada. São Paulo: Perspectiva, 1972.
BURKE, Peter. História como memória social. In: ____. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: IPHAN/Museu Imperial, 1999.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. vol. 2, n. 3, Rio de Janeiro, 1989. p. 3-15.
VASCONCELOS, José Gerardo; JÚNIOR, Antônio Germano Magalhães (Org.). Linguagens da História. Fortaleza: imprece, 2003.

quinta-feira, 17 de março de 2011

FESTA DA COLHEITA DO MUNICÍPIO DE CRUZETA/RN: uma celebração campesina na cidade


               A Festa da Colheita realizada na cidade de Cruzeta/RN, que tem sua origem em 1960 com a celebração da Missa do Agricultor, momento experiencial para sua primeira realização em 1961, constitui um evento marcado pela integração entre os espaços urbano e rural. O surgimento dessa celebração está relacionado ao período das grandes colheitas que eram realizadas nas extensas fazendas localizadas nos territórios deste município onde a agricultura era a marca fundamental da vida econômica desta localidade. Até a década de 70 o município de Cruzeta possuía uma economia predominantemente rural, com o desenvolvimento da pecuária , da agricultura e da piscicultura. Em sinal de agradecimento a Deus pelas primícias da terra e as chuvas caídas anualmente, organizou-se uma festa sócio-religiosa que tem seu início na zona rural, com a celebração de missas e animados leilões. A véspera da festa conta com uma Assembléia Cultural, que no sábado, realizava diversas apresentações artísticas, mostrando a cultura do homem campesino. Esta celebração tinha o objetivo de integrar o homem rural com o homem citadino e valorizar a figura do produtor rural pela labuta diária no trato da terra e pelo sustento da mesa sertaneja. É nesse sentido que podemos compreender a festa como um festejo que reúne celebração, diversão, espetáculo, exaltação e economia. Para Rosa (2002. p.14) a festa está contida de muitos significados. A festa como espetáculo está pautada num momento de celebração de alegria e felicidade, mas pode assumir outras características, como a de exaltação coletiva ou violência, de comportamentos mais rústicos ou de manifestações do corpo grotesco.

            A concepção de Canclini (1983) descreve bem o exemplo da festividade no município de Cruzeta, pois ele caracteriza as festas camponesas como acontecimentos coletivos enraizados na vida produtiva, celebrações fixadas de acordo com o ritmo do ciclo agrícola ou do calendário religioso (p. 15). A partir do exposto acima, identificamos muitos elementos que compõem a Festa da Colheita em Cruzeta. Seriam eles os produtos agrícolas cultivados, as celebrações de oferendas e agradecimentos, combinadas com o período correspondente a época das colheitas. A festa seria, nesse sentido, um espetáculo de celebração, alegria e felicidade, em favor dos produtos colhidos nas plantações da região.

No entanto, atualmente percebe-se muitas transformações no caráter particular desta celebração, uma delas é a perda do sentido existente nos primeiros anos de sua realização. O sentimento de coletividade, antes existente já não se encontra mais predominante, e dá lugar ao interesse individual e lucrativo, identificado nos agricultores que participam do desfile festivo em troca do recebimento de brindes, camisetas e quites distribuídos no período da festa, além dos instrumentos de trabalho fornecido pela prefeitura da cidade para a apresentação no desfile.
Quanto à realização da festa, durante os anos que se seguiram desde 1961, houve uma variação perceptível. No início das comemorações das grandes colheitas o tempo estabelecido era natural, pois não havia demarcação de momento, ou seja, variava de acordo com a realização das colheitas. Hoje, a festa se enquadra no tempo social, que de acordo com Bosi (1995), está pautada nas decisões próprias da comunidade ou dos responsáveis pelo evento e não mais de acordo com as definições dos fenômenos naturais. A festa é associada a motivações, valores e interesses diversos, que se relaciona aos acontecimentos comemorativos. A motivação individual ou coletiva, singular ou plural, está associada a valores direcionados à agricultura, a celebração das colheitas (p. 18). A Festa da Colheita foi criada para proporcionar a aproximação do homem rural com o homem citadino, dado ao estado de quase isolamento que havia entre essas duas partes. Além de possuir uma ligação com os ciclos da natureza, a festa está interligada com o trabalho agropecuário e ao cotidiano das pessoas, trazendo um repertório de situações familiares à lide agrária . 
No momento em que a festa se manifesta como tempo e espaço de vivência do lazer, esta se revela, dentre outros aspectos essenciais, a interdependência entre lazer e trabalho. Na festa da colheita encontramos esse aspecto. Ao tratar dos espaços de sua realização, chamamos atenção para o espaço em que ela se caracteriza. Os cenários são apropriados pelos grupos humanos de acordo com suas concepções, com seu modo de vida. Os novos personagens preenchem, de nova forma, o antigo espaço, transformando características comuns da vida do lugar. Essa nova população relaciona-se com a população local, ressignificando o espaço e o tempo da cidade e da festa, em que a rua é o grande palco onde se realizam as ações e transformações desses agentes sociais.
O processo de diversificação das atividades rurais, com a inserção das novas tecnologias nos espaços campesinos tem diminuído a dicotomia entre rural e urbano. Mesmo assim a festa da Colheita ainda representa um indicador do modo de vida rural mesmo no ambiente urbano, ainda que seu sentido primeiro tenha se transformado e se revestido de outros significados. Com tudo, não podemos deixar de mencionar os mecanismos utilizados pela Prefeitura Municipal de Cruzeta, principal responsável pela organização da festa, para não deixar que esta tradição seja extinta no município. A entrega de quites, camisetas e instrumentos de trabalho agrícola; sorteios de novilhos, almoço e shows musicais, se constituem em alguns desses exemplos. 
A festa acontece em um universo político, sociocultural, econômico e simbólico. Ela concebe, sustenta e se atenta a todos esses elementos. Ela é a memória, é a tradição.
Referências bibliográficas:
CANCLINI, N. G. (1983). As culturas populares no capitalismo. Trad. De C.N.P. Coelho. São Paulo: Brasiliense.
GOES, Terezinha de Jesus M. Noções de geografia e história do Município de Cruzeta. Recife, PE: CEPE, 1971.
ROSA, Maria Cristina. Festa, lazer e cultura. Campinas, SP: Papirus, 2002.