Centro Histórico de Cruzeta

Centro Histórico de Cruzeta
Fotografia do Centro Histórico de Cruzeta tirada em meado dos anos 1960

sexta-feira, 18 de maio de 2012

HISTORICIZANDO A CIDADE DE CRUZETA E SUAS PRÁTICAS FESTIVAS


Luciano Aciolli R. dos Santos.

O acontecer festivo está intimamente relacionado à predisposição do homem em conviver em sociedade. Foi refletindo sobre isto que Lefebvre aludiu que a cidade reencontrasse a sua função primordial que é a festa. Contudo, como bem expressou Dantas, “a cidade é um hipertexto” (2005. p.19) que para lê-la é necessário “navegar nos limites de seus enunciados” (Idem, p. 15), isto é, compreender e decodificar a semântica de seus espaços com suas cores, sons, imagens, odores, cenários, expressões fisionômicas, práticas e comportamentos. Para isto Dantas nos orienta que “decodificar os signos urbanos” é estar atento para o significado e impressão que cada elemento supõe em meio a uma polifonia de imagens, sons e expressões que muitas vezes abundam em formas e insuficiências de palavras. Nas próprias palavras da autora a cidade “(...) assemelha-se a um “campo magnético” que atrai os homens e sua história, registrando as maneiras de pensar, agir, metamorfosear o espaço. A fisionomia da cidade é a própria expressão daqueles que a habitam (“ou serão habitados por ela?”), reveladora dos fantasmas, conflitos desilusões que constroem o “emaranhado da existência humana” (2005. p. 19).

Festa do interior
  Esta qualidade que assume a cidade nos faz pensar como a autora que o “lugar é pura subjetivação”, mas também lócus de uma experiência cotidiana empiricamente tangível onde se revelam as duas dimensões da existência humana: a material e a espiritual. É neste sentido, que Matos nos diz que sobre esta cidade “descortinam-se cidades análogas invisíveis, tecidos de memórias do passado, de impressões recolhidas ao longo das experiências urbanas” (2002. p. 35). Em vista disso também concordamos com Morais quando a autora observa que a vida nos espaços citadinos assinalada pela aglomeração e o sentido de pertencimento ao lugar se fundamenta no “espírito de luta canalizado para o enfrentamento das situações e problemas existentes” (2005. p. 175) o que supõe pensar o local também como “espaço de resistência”. 

Autoridades do Estado do RN em vistoria às obras do açude Cruzeta em fevereiro de 1923. 
 Pensar o espaço de resistência no qual a festa tradicional se apresenta como uma de suas expressões mais pujantes é discernir sobre o processo histórico de formação dos lugares alicerçados nos seus elementos concretos e simbólicos, materiais e imateriais à medida que estas noções sustentam a base sócio-espacial de suas paisagens e articulam as relações sociais em seu interior. Para nos dar conta deste processo na cidade de Cruzeta, iniciemos, pois, analisando a produção deste espaço.

  De acordo com o que ocorreu em outros processos de produção dos espaços urbanos na região do Seridó Potiguar onde se observa a importância crucial do papel das fazendas de criatório de gado como fator determinante na organização espacial dos futuros embriões das primeiras cidades seridoenses, o município de Cruzeta/RN, encravado na Microrregião Seridó Oriental, com área territorial de 288 km² e população de 8.333 habitantes de acordo com o censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) no ano de 2006, não pode ser entendido apenas sob ponto de vista desta lógica histórica. Como interpreta Medeiros (2005), “a cidade é uma realização humana, uma criação que vai se constituindo ao longo do processo histórico e que ganha materialização concreta diferenciada em função de determinações históricas específicas. Sendo resultado das profundas transformações pelas quais passou a sociedade, a cidade reflete as formas, características e funções de acordo com diferentes momentos históricos em seu processo de produção, apresentando-se, assim, como um espaço possível de mudanças e permanências” (p. 45). Desse modo, podemos dizer que o surgimento do povoado de Cruzeta em 1920, não foi resultado de um processo histórico cumulativo e despropositado ou mesmo da mobilização de meras forças individuais cuja lógica se perdeu na sincronia do tempo. Mas sim produto de um projeto político econômico intencionalmente direcionado e intimamente relacionado ao desejo das elites locais em desenvolver economicamente a região, projetar-se no cenário político nacional e fincar seus domínios políticos neste espaço regional. 
Visão geral de terreno e casas usadas como acampamento do 
2o. Distrito das Obras para a construção do açude "Cruzeta".
 
Se a historiografia regional consagrou a economia pecuária como fator determinante para o surgimento das primeiras cidades na região do Seridó potiguar desenvolvidas a sombra das fazendas de criar gado, por outro lado, não se pode entender a origem do município de Cruzeta sem considerar a importância que a cotonicultura representou para o surgimento desta cidade, pois conforme concordamos com Andrade (1981), “o homem é o sujeito no processo de produção do espaço, organizando o mesmo de acordo com os seus interesses, com os seus objetivos, em função da realização econômica das classes dominantes e lançando mão do capital e dos recursos técnicos de que dispõe, enquanto o meio natural é o objeto que oferece, conforme o momento histórico, condições mais ou menos favoráveis de utilização, face às metas a serem atingidas” (p.9-10).
Ao tratar da importância da cultura algodoeira no processo de urbanização do sertão seridoense, Medeiros (2005) informa que a crise na atividade pecuária desencadeada a partir da secunda metade do século XIX em decorrência de secas prolongadas e da queda nos preços do gado seridoense nos principais mercados consumidores elevou a cotonicultura a um estatuto privilegiado na articulação da vida econômica regional no final deste século e início do século XX impulsionando a ocupação do espaço antes ocupado pela pecuária e, sobretudo, devido à alta na demanda pelo algodão no mercado externo e interno e suas ótimas condições de adaptação ao clima e solo da região. Todos estes aspectos conjugados cooperaram para que esta economia fosse empregada em grande escala na região do Seridó e contribuísse para o desenvolvimento e o fortalecimento dos núcleos urbanos, levando-os a alcançar, posteriormente, as categorias de vila e cidade. Porém, diante deste processo histórico regional conferido às cidades seridoenses trataremos de modo especial ao aspecto particular auferido a fundação do povoado de Cruzeta na segunda década do século XX.
Estudando o processo de relações entre campo e cidade no sertão do Seridó Morais elucida que até o final do século XIX “a fazenda era o espaço de moradia e de trabalho do homem seridoense, que se dedicava à lida com o gado e a semeadura da terra. Nesta sociedade em que as vivências eram matizadas pelo apego às tradições, a estratificação social, ao mesmo tempo em que se revelava pela concentração de terras, de bens e de poder, era dissimulada por relações de compadrio e gratidão. Proprietário e morador conviviam de forma aparentemente amistosa, tecendo relações em que as tensões eram abafadas ou sequer floresciam. As vilas e cidades, sedes do poder administrativo dos municípios, representavam o arremedo de urbano que lentamente se formava. Nestes lugares, os moradores das cercanias urbanas promoviam encontros, reuniões, feiras e celebrações, principalmente religiosas e festivas. (...) A fazenda de criar, era, por excelência, o espaço do acontecer regional” (2006. p. 80).


Fazenda Timbaúba dos Gorgônio em 1929
 
A citação acima serve bem para ilustrar a conjuntura histórica em que se encontrava o território-embrião da cidade de Cruzeta antes da fundação do povoado quando este era apenas só mais uma fazenda engastada no território seridoense pertencente ao município de Acari. A professora Terezinha de Jesus Medeiros Góes em seu livro “Noções de Geografia e História do município de Cruzeta” (1975) relata que antes da fundação do povoado de Cruzeta, as terras onde hoje está assentado o município com este mesmo nome pertenciam ao sítio Remédios de propriedade do senhor Joaquim José de Medeiros que herdou de herança de seus antepassados. Este paralelamente as obras de construção de um açude público projetado pela Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) em terreno de sua propriedade doou suas terras para a fundação de um povoado e “edificação das residências daqueles que passassem a povoar o lugarejo nascente” (GÓES, 1975. p. 52). Segundo ainda a autora, as terras foram doadas ao patrimônio de uma capela que seria construída naquela época em concomitância aos trabalhos de construção do açude, representando, ambos, os dois marcos históricos edificados do povoado.
A tradição histórica local enfatiza em sua narrativa o caráter acentuadamente a-histórico de seus personagens fundadores ao desterritorializar suas ações das circunstâncias históricas em que foram produzidas e revesti-las de um caráter genuinamente personalístico e atemporal. São narrativas quase sempre biográficas de homens públicos que procuram exercer na memória social a função de sua natureza exemplar e a perpetuação dos valores morais que suas atitudes encerraram no passado. Dessa maneira, Joaquim José de Medeiros, conclamado fundador da cidade de Cruzeta, ainda hoje é rememorado como um homem de “espírito empreendedor”, de “visão de futuro”, um “cidadão honrado e trabalhador, de resoluções inquebrantáveis (...) sempre tomadas para o bem comum” (Idem, p. 84), visão de sujeito histórico ancorada na memória dos feitos e grandes homens do passado e fundamentada "em noções extremamente restritas do que (e de quem) importa na história, e de como (e por quem) é gerada a mudança histórica" (THOMSON et. al. 2006. p. 75).
Mas se é possível identificar um fator determinante para a origem da cidade de Cruzeta, esta não está unicamente na “atitude generosa” de seu fundador. O historiador cruzetense Adauto Guerra Filho, relata em seu livro “O Seridó na memória de seu povo” que já em 1920 alguns representantes da Inspetoria de Obras Contra as Secas vieram ao Seridó à procura de maiores informações sobre o melhor lugar para se “fazerem a planta de uma nova cidade que estava para nascer no Seridó, a Vila dos Remédios, hoje denominada de Cruzeta” (2001. p.144). Este dado condiz com o que Terezinha Góes também relata em seu livro quando escreve que ainda em 1910 no governo do Presidente Nilo Peçanha e do Governador do Estado do Rio Grande do Norte Alberto Frederico de Albuquerque Maranhão, “teve lugar o estudo do açude [de Cruzeta] que só dez anos mais tarde receberia despachos para a sua construção” (GÓES, 1975. p. 52).

Açude "Cruzeta" construído no leito do rio São José na Fazenda Remédios 
(atual cidade de Cruzeta) com vista parcial para a casa-grande
demolida para construção do sangradouro
 As tessituras destes fatos confluem para uma conjuntura histórica que extrapola a lógica da dinâmica local. Se tomarmos como base o contexto da época analisada poder-se-ia descortinar neste período uma região cuja elite político-econômica local buscava afirmar nos valores de civilidade e progresso representados pela vida racional nas cidades, pelo desenvolvimento do comércio e da indústria e o incentivo do ensino técnico, temas bastantes circulantes nos discursos de políticos e intelectuais brasileiros, o caminho mais curto para se chegar à modernidade aqui entendido em oposição a um sentimento de ruptura com o passado de atraso, de dificuldades e de estigmas provocados pelas adversidades da natureza e da sociedade que vinham “castigando” as populações locais desde épocas pregressas. 

Currais Novos na senda do progresso. Praça Cristo Rei em 1937

Esta busca pela "modernidade" do interior do país, isto é, os chamados sertões brasileiros, representa o desejo ou o esforço das elites político-econômicas nacionais em “atualizar” o Brasil com o ritmo de desenvolvimento vivenciados neste período pelas nações europeias ou pelos Estados Unidos, num momento em que os espaços territoriais conhecidos por sertões passaram a ser vistos como um fator de impedimento para o progresso da nação. A problemática das secas no semiárido nordestino era um destes fatores que mais citavam preocupações nos meios políticos, já que suas mazelas acabavam por afetar as estruturas sociecômicas de todos os extratos sociais pondo em perigo o controle social de suas populações e ameaçando o poder econômico dos grandes proprietários rurais. 

           Avenida Central no Rio de Janeiro em 1910. Modelo de cidade moderna.

A construção do Açude Público de Cruzeta foi um desdobramento desta circunstancia histórica inicial, o que não impediu que as elites locais não utilizassem deste benefício para assegurar seus privilégios e domínios na região. Assim, tendo em vista, que foi a partir da segunda década do século XX que as discussões em torno do desenvolvimento regional pautado na agricultura começaram a amadurecer no cenário político Estadual, o projeto de fundação da cidade de Cruzeta, nasce, pois, aliado aos interesses econômicos e sociais da elite política regional, quando a cotonicultura tomada como discurso político regionalista passa a ser apregoada como a “panacéia não só de todos os males do semi-árido, mas também dos Estados do norte e até da Nação [onde] o algodão seria o deus ex machina que teria a virtude de integrar o ignoto e longínquo sertão à nacionalidade” (MACÊDO, 2005. p.185-186). Em vista disto, a fundação do povoado de Cruzeta em 1920 está intimamente relacionada ao projeto de desenvolvimento regional a partir da implementação da economia algodoeira em território seridoense.
O desdobramento deste contexto não está apenas explícito na construção do açude público concluído em 1929 onde teria suas águas amplamente utilizadas no cultivo dos campos experimentais do chamado algodão “mocó” fundados pelos técnicos agrícolas do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio ainda em 1925 em suas adjacências ou aproveitadas como substrato de irrigação no cultivo complementar de produtos hortigranjeiros em terras de aluvião, mas também de sua localização central em relação às principais cidades da região já que a escolha do povoado de Cruzeta como sede da Estação Experimental do Seridó também foi pensada de forma estratégica: localizada no coração do Seridó o trabalho de beneficiamento, seleção e distribuição das sementes de algodão mocó realizado pela Estação Experimental se fariam de forma mais eficiente e econômica, já que sua localização geográfica facilitava a distribuição da “boa semente” pelas fazendas de plantio espalhadas nos principais municípios da região dinamizando os empreendimentos e atenuando as distâncias. A transferência das instalações provisórias da Estação Experimental do Seridó da Fazenda Bulhões, localizada no município de Acari para sua instalação definitiva no povoado de Cruzeta em 1930, cujo projeto remonta a 1929 do então Senador da República José Augusto (FILHO, 2001, p. 47) de acordo com as instruções aprovadas pelo Ministério da Agricultura desde 9 de Dezembro de 1924, reflete a influência do fator político-econômico na fundação da cidade. Segundo Campos & Morais (2011) o objetivo da Estação Experimental do Seridó “era realizar pesquisas visando à melhoria do algodão arbóreo (mocó), produto básico da economia e principal item da pauta de exportações do Seridó e do Rio Grande do Norte, entre o final do século XIX e os anos de 1970” (p.47). Ademais são desta época os estudos do solo local que comprovavam a existência na localidade de Cruzeta de terras de reconhecida aptidão para a produção cotonicultora. 

Campo de Cooperação da Estação Experimental do Seridó
Tendo em vista que a cidade surgiu sobre os auspícios da cotonicultura, não é curioso que esta marcaria profundamente as práticas festivas e a sociabilidade cotidiana no campesinato local. Segundo depoimento concedido pelo senhor Pedro Pereira da Silva, 51 anos, os festejos, cantorias e outros momentos de sociabilidade ocorridos no campo eram participados de um modo geral tanto pelos moradores da cidade como da zona rural e coincidiam com as épocas de cultivo e apanha do algodão e também de outras lavouras:

De uma forma geral, todas aquelas pessoas buscavam um meio de se divertir, porque não existia. Qualquer coisa que fosse fazer era um meio delas participarem. Naquela época só existiam dois meios. Quais eram os meios: era a agricultura e a pecuária. E o que era que tinha na agricultura: a agricultura era baseada no algodão. Todo o pensamento, ou seja, todo trabalho era voltado para o algodão, o algodão mocó, eu alcancei. Agente passava o ano todinho trabalhando só direcionado para o algodão no mês de setembro, que era quando chegava a produção e agente ia arrecadar, apanhar, juntar todo e vendia, entregava nos armazéns 500 kg, 600kg, 1.000 kg, dependendo do ano. As vezes agente plantava algodão no roçado um dia no mês. A casa ficava no meio e o roçado era ao redor da casa mesmo, então, era cercado de algodão e todas as lavouras. Agente plantava no inverno milho, feijão e algodão. Agora o algodão era o principal, pois era o “ouro branco”, como chamavam.” .” (Entrevista realizada no dia 03/11/2009 ás 20h30min)

Ao interpretar a importância do “ouro branco” para a construção de uma identidade e discurso regional que persiste ainda hoje, Macedo (2005) diz que apesar de hoje a paisagem seridoense não ser mais “pontilhada pelas plumas de algodão que branqueavam a perder de vista os campos sertanejos, (...) a persistência do algodão no regionalismo seridoense é tal que, nos dias atuais, embora sendo a cotonicultura apenas um residual traço estatístico no Seridó, esse produto continua a gerar valores simbólicos. (...) Neste sentido, mesmo ausente, o algodão ocupa um lugar no espaço como persona imagética na formação da paisagem regionalista”. (p.167-168)

Plantio de Algodão na fazenda (década de 1960)
No período em que o algodão alçou ao patamar de principal produto de cultivo nas áreas agrícolas estendidas pelas fazendas locais entre as décadas de 1940 e 1970, a cotonicultura passou a configurar-se no principal motor de desenvolvimento socioeconômico da cidade instigando um relativo crescimento urbano. Este dado é relativo porque, contraditoriamente, ao que se pensa, o cultivo algodoeiro nas fazendas de campos cultiváveis funcionava até a década de 1970 como agente fixador de muitas famílias de lavradores às unidades rurais. Esta realidade mudaria a partir deste período em diante, quando o município iria conhecer um contínuo crescimento de sua massa populacional urbana acompanhado de uma progressiva expansão urbanizadora provocada principalmente pela decadência da cotonicultura na região e pela busca de muitas famílias de produtores rurais por melhores condições de vida na cidade.
 

Colheita de algodão na fazenda


Mas se por um lado o fator político-econômico e geográfico foi determinante para o surgimento da cidade na segunda década do século XX, do mesmo modo, não se pode negligenciar a importância do fator sociocultural na construção de um sistema de relações comunitárias e a dinâmica de integração interna entre as populações locais. Visto deste modo, podemos tomar como marco de fundação da cidade dois acontecimentos simbólicos que fundam e consagram o nascimento da vida cultural e social do povoado: a celebração da primeira Missa em 24 de Outubro de 1920 em altar improvisado pelos moradores locais e a realização da primeira feira livre campal ao redor da primeira casa comercial do lugarejo nesta mesma data. (GOES, 1975, p. 56)
A celebração da primeira Missa representa no ato de fundação da comuna a sagração do território numa concepção cosmogônica cristã dotada de um tradicional significado religioso para o homem sertanejo seridoense, atitude implícita na obra de doação de terras do Senhor Joaquim José de Medeiros para o patrimônio de uma capela que seria construída no início do povoado sob a invocação de Nossa Senhora dos Remédios erigida em 1920 como padroeira do povoado. A realização da primeira feira campal encena o nascimento do “embrião de uma nova aglomeração humana a partir da atividade comercial”. (VEDENA, 2004. p.11). Ambos os acontecimentos, marcam o início de um sistema de relações socioeconômicas e culturais entre o espaço urbano e o rural que teria nas práticas festivas e nas atividades coletivas lúdico-religiosas a expressão mais visível de uma forma de viver local passando a agregar os “bairros rurais” ao centro urbano que começa a se formar numa dinâmica de relações que contribuiria para o surgimento do grupo comunitário.
Embora com a fundação do povoado o núcleo urbano passasse a agregar cada vez mais moradores, antes de 1930 este ainda era bastante reduzido, não possuído mais que “apenas algumas rústicas casas e a capela de Nossa Senhora dos Remédios, subordinada à Freguesia de Nossa Senhora da Guia do Acari” (FILHO, 2001. p.128) imperando na paisagem protourbana. A vida inicial do povoado dependia estritamente da dinâmica rural de suas adjacências, confundindo-se, mormente, com a paisagem rural de seu entorno, salvo o dia de feira semanal e os dias de santos principais celebrados na capela local que faziam lembrar o significado primordial de sua origem já que os morados dispersos pelos bairros rurais se reuniam no povoado para festejar, socializar-se e “fazer a feira”. A feira livre se constitui num espaço de sociabilidade local por excelência, já que seu sentido é agregar a diversidade e misturas de atores, sonoridades, odores, desejos, cores, performances, lugar de encontros e desencontros amorosos, de reencontros entre amigos, vizinhos e parentes. Espaço “das conversas, das tradições, dos encontros, das transgressões, das experiências, das compras, vendas e permutas, das jocosidades (...) a feira se institui, antes de tudo, em um espaço de mobilidades comerciais e sociais onde, por meio das diversificadas dinâmicas, ergue-se uma rede de sociabilidades vivenciadas pelos agentes sociais no âmbito dos territórios construídos” (MORAIS & ARAÚJO, 2006. p. 247)


Feira sertaneja

Mas a passagem do povoado a categoria de Vila em 1937, sinalizou uma nova dinâmica para o espaço. Agregando um número maior de residências e moradores, a vida sociocultural da Vila de Cruzeta gravitaria em torno da Capela com suas atividades sociorreligiosas e do Palanque com suas festas e recreações de cunho mais profanas. As atividades sócioreligiosas se organizavam em torno das confrarias, associações e irmandades leigas responsáveis pela administração dos terços, novenários e capelinhas distribuídas itinerariamente pelas residências locais, além de caminhadas de orações (cruzadas) pelo entorno da capela. Sobre este aspecto relatou Albani Guerra in. Campos & Morais (2011):

No mês de maio, quando se reverenciava Nossa Senhora havia novena diariamente, e cada noite um setor da sociedade era encarregado de organizar as homenagens – eram os noitários. Estas eram representadas através de cânticos, fogos, flores, quadros vivos e ornamentação dos altares; e diferenciava de acordo com o poder aquisitivo de cada classe social” (p.79).



Coroação de Nossa Senhora durante as festividades no mês de março 
na capela de N. Sra. dos Remédios em Cruzeta

Mas havia períodos do ano em que as festas na Vila recebiam um aparato todo especial e os moradores do lugarejo engalanavam suas residências e preparavam as melhores iguarias da casa para receber os parentes, amigos e visitantes provenientes do campo ou mesmos de outras cidades e redondezas. Tal era a atmosfera festiva vivenciada na ocasião da Festa de Nossa Senhora dos Remédios que ocorria no mês de Outubro de cada ano em homenagem à santa homônima que é padroeira do lugar. No período que antecedia a festa aumentava-se o movimento nas casas dos alfaiates e costureiras onde a procura pelos modistas era prática bastante corriqueira. Como relata Campos & Morais (2011), por ocasião da festa, a Vila

“(...) era acometida por certo frenesi, que modificava a dinâmica do cotidiano. Era um corre-corre das modistas que tinham pouco tempo para dormir, assoberbadas com a tarefa de bem vestir a sociedade e preocupadas com a confecção dos belos trajes que seriam estreados no decorrer da festa. Dentre as habilidosas costureiras, destacava-se Zefinha de Lalau, famosa na arte de transformar tecidos em verdadeiras obras-primas, deixando elegantes as senhoras e senhoritas que abrilhantavam as festividades. Empolgadas, as donas de casa já se organizam com a finalidade de prepararem as guloseimas que seriam degustadas pela família e pelos visitantes que comparecessem às suas residências.”


Aspecto de uma antiga procissão de São José, 
padroeiro do município de São josé do Seridó/RN

 Outro acontecimento que assinalava o advento da “Festa-mor” na Vila era a chegada do parque de diversões nos dias que antecediam as festividades. Em suas memórias de infância, Campos & Morais (2011) relatam o significado e as impressões que este episódio lhe representava. 
 
“Outro evento que movimentava a Vila era a chegada do parque de diversões que, ao ser armado no centro urbano, já contagiava as pessoas, ao espalhar seus ares festivos. A chegada do parque assinalava uma realidade irrefutável: realmente, a festa já começara! O tão esperado e querido parque era constituído de um velho e animado carrossel, um juju (para crianças menores), algumas canoas e uma onda (grande roda que girava, subindo e descendo). Porém, o que mais despertava interesse no parque de diversões era o carrossel. Por não ser motorizado, era empurrado a muque, pelo cidadão conhecido como Antonio Oião, pois tinha olhos muito grandes e ostentava uma musculatura bastante desenvolvida. O carrossel exalava um horrível cheiro de carbureto e óleo queimado, usados como combustíveis. Seu interior era iluminado por enormes lamparinas abastecidas a óleo queimado. Para abrilhantar o movimento do carrossel, no seu interior ficava um conjunto musical, composto por uma concertina, um pandeiro e um triângulo, tocados por Cícero Marcelino, Venceslau Duque de Boêmio e outros artistas do ramo, com o objetivo de deixar mais animado aquele ambienta de diversão. Infelizmente, como o cheiro exalado pelos combustíveis era desagradável, muita gente saía do carrossel passando mal, com crises de vômito e mal-estar.
Mas, apesar de todo aquele desconforto, o pessoal dirigia-se ao parque, a qualquer hora, especialmente no dia da festa. Nem mesmo o calor insuportável do sol de outubro impedia a ida das pessoas àquele delicioso ambiente que proporcionava diversão” (p.24)
Imagem de N. Sra. dos Remédios, padroeira dos cruzetenses

Segundo ainda as autoras citadas, na ocasião da Festa da Padroeira também era prática comum entre os moradores da Vila fazerem a renovação exterior da paisagem urbana através da pintura das residências e demais prédios do lugar dando ao panorama um colorido especial. Esta prática acontecia por que “assim como havia a preparação do espírito e a limpeza da alma, expurgando-se a sujeira que por vezes habita os corações, também ocorria a preparação da cidade e a limpeza dos prédios, livrando-se da sujeira que tornava feia a paisagem do lugar” (p.23) 
 
Mas a “festa na rua” também era um momento de se agregar numa coletividade, de se reconhecer como sociedade e compartilhar experiências comuns, já que nestas ocasiões “a comunidade se revitaliza, se recria, se encontra e se vê como um todo” (FERRETTI. 2007. p.) Sobre o aspecto social da Festa de Nossa Senhora dos Remédios, Terezinha de Medeiros Góes, relata suas memórias em Carta Aberta para a redação do jornal “O Cruzetense” idealizado por ocasião do primeiro jubileu de emancipação política do município em 1978:

“A vida social se revelava em toda a sua exuberância nas animadas festas anuais, em outubro, realizadas no palanque, construído para palco da FESTA-MOR. Ali, em cada ano que se seguia, as alegorias eram mais caprichosamente idealizadas e levadas a efeito. D. Jacinta Veras, com a casa sempre cheia de moças, era a força daquelas demonstrações de bom gosto que atraíam a grande maioria dos seridoenses à animada festa de outubro, em Cruzeta. Os três últimos dias do novenário eram animados com baile e barracas ao mesmo tempo. Na missa de dez horas, do dia da festa, o luxo era maior e até bonitos chapéus com véus cobrindo os rostos, eram ostentados nas cabeças vaidosas das moças e senhoras. Nas barracas, trabalhavam rapazes, moças, crianças, senhoras. Uns eram serventes, uns estafetas, outras ciganas e cada um ou uma, exercia uma função cuja finalidade era exclusivamente angariar recursos para a igreja. E como era pitoresco assistir a chegada das famílias numerosas que vinham de seus sítios ou fazendas!... Desde a ante-véspera da festa. Elas chegavam a pés ou de cavalos. Vinham passar o tríduo da festa nas suas casas da rua. Na igreja você encontraria,, muito bem vestidos, com a característica que lhes era peculiar de austeridade e respeito, os considerados patriarcas(...) No leilão, da véspera da festa, lá estavam eles, arrematando os prêmios que na maioria eles mesmos haviam doado”. 


Eram  jovens trajadas como estas que aninavam as barracas 
da Festa da  Padroeira nos anos 1940 em Cruzeta. Na foto, garçonetes 
da Festa da Padroeira de Cuité/PB em 1943

Com base neste fragmento de narrativa a festa pode ser interpretada á luz da sociologia simmeliana que entende as práticas de sociações e interações entre os homens como formas sociais lúdicas. Momento de estar-junto e “jogar sociedade”, a festa é uma “forma” capaz de reunir conteúdos múltiplos, e destinada à promoção dos laços de sociabilidade ainda que nem sempre hamônicos. (SIMMEL 2006 Apud. LEONEL. 2009) A organização das barracas da festa que disputavam a primazia de quem angariava mais recursos para a igreja e reuniam para este artifício pessoas de ambos os sexos e de todas as idades representavam uma forma de sociação e interação lúdica de “ser com/e para com o outro” imbuído de um empenho “racional-utilitário” (granjear recursos para a igreja) que se fundamentava também num interesse “emocional-afetivo” (envolver as pessoas no jogo lúdico da festa nas brincadeiras da venda de beijos, da entrega de telegramas admirados ou jocosos, na imaginação esotérica das cartas ou da bola de cristal onde se desvendavam amores e descaminhos futuros, dentre outras formas lúdicas de sentir e viver o momento festivo). Em vista disto, Santos (2008) diz que “uma festa carrega em sua essência a força de comunicação simbólica. Aspectos como carga emocional, o lúdico, o mágico, a socialização, bem como (...) a materialização de uma fé, levam à pensa-la a partir da visão de seus próprios portadores.  Visto como um acontecimento coletivo, a festa ultrapassa o sentido da comemoração e ajuda a reforçar os laços sociais e afetivos” (p.5).
 
Desfile para escolha da Rainha do Algodão realizado na Estação Experimental do Seridó durante a Festa do Algodão (Cruzeta, 1954)
 Além das ocasiões festivas, outros ambientes de sociabilidades também foram surgindo à medida que suas necessidades iam sendo geradas. Espaços como o famoso café de Maria Augusta e o bar de Dona Maria Texeira, um dos primeiros a surgir no centro urbano da cidade, eram tanto frequentados pelas “gentes de má fama” como por pessoas “de boa criação”, ainda que nestes ambientes os comportamentos estivessem subordinados as regras e padrões sociais estabelecidos. Mas foi ainda neste período onde passaram a existir na Vila os espaços de sociabilidades suspeitos e repelidos pelas funções que representavam e as atividades que encerravam. Eram os famigerados "gango", casas de baixo meretrício que geralmente situavam-se a muitos metros de distâncias das áreas de moradia familiar, mas que em dia de feira eram ambientes bastante procurados e frequentados por rapazes e senhores provenientes da zona rural. Todos estes espaços também contribuíram para que um sentimento de pertencimento embasado nas experiências partilhadas do homem rural no ambiente urbano servisse para gerar vínculos afetivos de identificação com o espaço da cidade, ainda que, vez e outra esta empiria acabasse em tragédia. A memória social registra inúmeros casos de morte e assassinato, sobretudo por esfaqueamento envolvendo moradores rurais e urbanos nos finais de feira ou nas “casas suspeitas” deixando revelar rixas ocultadas, amores proibidos, orgulho ferido e imprecações que geralmente desaguavam em desordem e querelas. 

 Por sua vez, a vida sociocultural no campo estava marcada pela solidariedade grupal pautada pela necessidade de ajuda mútua, onde os vínculos de parentesco e vizinhança eram determinantes. Sobre este aspecto, Pedro Pereira, registra em suas memórias:

“Naquela época, as primeiras comunidades tinham aquela afinidade grande. Então o que é que acontecia: numa casa de uma determinada pessoa matava um carneiro e aquele carneiro eles [moradores da casa] não se preocupavam em vender. A preocupação maior deles era distribuir, vamos dizer um pedacinho pra aquele vizinho, outro pedacinho pro outro, outro pedacinho pro outro. Então, eles viviam com aquela harmonia, assim, de comunidade, essa divisão de bens. (...) Outra coisa que também existia muito forte na vizinhança era [quando] o roçado de um deles [cujo dono] (...) não estava dando conta de limpar, então se juntava aqueles vizinhos todinhos: “hoje nós vamos limpar o roçado de fulano”. E amanhã agente ajuntava todo mundo e ia limpar o roçado de outro vizinho assim por diante”. (...) Lá naquela reunião ia aparecendo de tudo. Ia aparecendo a cantoria. Iam aparecendo os versos, ia aparecendo o casamento oculto (...), ia aparecendo várias e várias brincadeiras culturais. (...) Então as pessoas ficavam felizes e aí dentro daquele momento ia aparecendo o quê: o namoro. Tudo surgia daquele momento cultural.” (Entrevista realizada no dia 03/11/2009 ás 20h30min)

Inspeção em milharal numa fazenda em Cruzeta


Como enfatiza o depoimento acima, a realização de festejos e momentos de sociabilidade coletiva atrelava-se ao cotidiano da vida produtiva no campo e geralmente estavam associados a práticas de devoção dedicas a alguma entidade católica, pois a necessidade de vencer principalmente os desafios impostos pelo o trato com a terra e as distâncias geográficas implicava num litígio grupal. Desse modo, a labuta extensiva e a lide coletiva no campo suscitavam regularmente a necessidade de ocasiões de encontro onde o trabalho muitas vezes combinava-se ao lazer expressando um modo de viver das populações rurais e suas maneiras de relacionar-se com o ambiente de vivência e faina. Na concepção de Santos (2008) “associada ao trabalho, a festa seria encarada como bálsamo da lida temporal, programada a fuga da fadiga, da opressão. É o extravasamento da vontade reprimida... Livres de qualquer amarras, os atores da festa se sentem absortos e profundamente envolvidos, transitando entre a exacerbação profana à glorificação religiosa”. (p.5)
 
Em outras ocasiões, estes momentos de sociabilidade assumiam uma dimensão ascendente podendo estender-se às populações mais distantes e mesmo agregar os moradores urbanos. Assim, para a organização destas celebrações, era comum existir nas fazendas a figura do festeiro que se encarregava de organizar os festejos locais e agenciar em companhia de outros assistentes quando necessários todos os seus preparativos, podendo vir também a contar com o auxílio da vizinhança local. 

 
Festa na roça

 Cada fazenda exercia além da função de unidade produtiva, o papel de um “bairro rural” formada inicialmente por seus trabalhadores e agregados dispersos na dimensão de seus domínios. Geralmente esta era de propriedade de uma família chefiada por um fazendeiro agropecuarista que detinha o poder de controle sobre os moradores locais, de decidir sobre os negócios e as atividades econômicas de sua propriedade rural, e ainda, interferir, nas relações socioculturais engendradas em âmbito interno e externo à fazenda.
A elevação da categoria de Vila ao conceito de Cidade em novembro de 1953 incumbiria à localidade um sentido de unidade territorial que antes existia apenas disperso nos laços de parentesco e vizinhança engendrados pelas vivências das tradições festivas e dos momentos de sociabilidade onde tanto os morados da “rua” como os habitantes do “sítio” se reuniam para celebrar, festejar e vivenciar os dias de santo, as colheitas propiciatórias, a feira semanal, o labor coletivo propinado nos momentos da debulha do milho e do feijão, as ocasiões de lazer animadas pelas cantorias de viola ou os forrós de alpendre sob a luz do lampião e da lamparina. Em vista deste novo arranjo político-administrativo, a configuração geopolítica local sofreria alterações em seus limites espaciais ao assumir categoria de Cidade passando por um reenquadramento territorial onde algumas unidades rurais seriam redistribuídas entre outras jurisdições adjacentes. 


Brasão de Armas do Município de Cruzeta

A proposta não seria recebida sem o mínimo de adaptação pelos munícipes, visto que, o novo arranjo político e espacial que se produzia necessitava de novas experiências sociais que possibilitassem a sua apropriação no nível interpessoal e subjetivo, pois a concretização de um sentimento de pertencimento passa, inicialmente, pela aceitação da condição de si e do outro. Este processo vivido tanto na dimensão do social, quanto do individual, forjaria o sentimento do ser cruzetense.
A experiência política das populações locais com a instituição dos pleitos eleitorais na jovem cidade proporcionaria esta nova práxis social aos novos munícipes. Os moradores de Cruzeta que antes pertencia à jurisdição de Acari/RN embora houvesse propriedades rurais pertencentes às jurisdições de Caicó e Jardim do Seridó onde seus moradores e agregados participavam da mesma dinâmica interna da comunidade local  - ambas as cidades situadas nos limites territoriais do município - agora possuíam autonomia para eleger seus próprios representantes políticos. Mas este artifício não foi debelado sem a existência de alguma confusão interna entre seus habitantes que vez e outra se embaraçavam quanto a qual jurisdição pertencia demonstrando que os laços de identidade que os prendiam a um território comum e balizava o sentido de coesão social ainda eram bastante fluidos. Sobre isto o historiador cruzetense Walclei de Araújo Azevêdo conta em seu livro “Fatos Pitorescos de Cruzeta” (2009), um caso bastante emblemático que ocorreu com seu avô José Ludgero, morador no município de Cruzeta. Este candidatando-se a vereador por aquela cidade saíra a procura de votos entre os eleitores de alguns sítios locais (Nicolau, Genezaré, Alegre)  pertencentes a jurisdição de Caicó que utilizavam seu caminhão para transportar-se até a feira do referido município a qual também realizava, enquanto que havia acertado com o seu “compadre” Sebastião Araújo, também candidato, que os dos sítios de Cruzeta lhe pertenciam por acreditar que este possuía poucos votos. No final obteve apenas três votos: o próprio, o de sua esposa e outro de uma amiga fiel, enquanto que o amigo conseguiu se eleger. Este fato contribui para o entendimento de que a Festa da Colheita instituída no município de Cruzeta em 1960 com o objetivo de agregar o homem do campo ao da cidade colaboraria para que uma nova experiência sociopolítica se firmasse no ceio das populações rurais e urbanas, ou seja, a de que ser cruzetense é habitar o campo e a cidade, é compartilhar de um mesmo território simbólico comum, em que o trabalhador rural é o seu agente basilar, já que garantia a sustentação da mesa das famílias sertanejas e a  dinâmica da economia urbana, esta  dependente de sua força de trabalho no campo. 



Celebração da Missa (Foto 1) e aspecto das alegorias do cortejo da festa da Colheita (Foto 2) em meados da década de 1960.

Desse modo, se por um lado, o fator político foi importante para a apropriação do espaço como território de afirmação de unidade social e de pertencimento a um grupo autônomo, o festar na cidade torna-se experiência decisiva para a expressão desse pathos. A Festa da Colheita demonstra o sentido de integração social e organização política que alcançou a celebração num momento em que a comunidade cruzetense demandava afirmar a sua identidade coletiva e tornar sólidos os laços sociais e afetivos reproduzidos por meio da consciência de “pertencimento” ao grupo social.  
O que a envolvia de um sentido identitário e simbólico particular era a sua capacidade criadora e gregária de reunir apenas em uma celebração espetáculo toda uma alegoria representativa do cotidiano de uma comunidade sertaneja tipicamente rural, com suas danças populares, ritmos, cânticos, sons e estilos musicais; objetos e utensílios de trabalho cotidianos transformados em instrumentos rituais que simbolizavam a lide do camponês com a terra e o trato com o gado nas fazendas ou mesmo o trabalho doméstico, seus paramentos e vestimentas usuais demudadas em trajes festivos, a gastronomia típica que compunha com pratos preparados com “grãos da terra”, dentre outras representações. 

Nazareth de Azevedo, Rainha da Festa da Padroeira de Cruzeta na década de 1940

Antiga procissão de N. Sra. dos Remédios, padroeira do município de Cruzeta/RN

Se a Festa de Nossa Senhora dos Remédios conferia um sentido gregário de comunidade, caracterizando-a como o espaço-tempo do (re)encontro e das trocas simbólicas e materiais, da imersão no mundo do sagrado pautado na experiência coletiva da religiosidade popular, termo utilizado aqui para caracterizar as práticas religiosas que se produz espontaneamente sem o apuro institucional da hierarquia eclesiástica, a Festa da Colheita, nasce com o sentido de reforçar e integrar os laços sociais entre o homem do campo e o da cidade a partir de uma experiência sociorreligiosa conjunta, inserindo o trabalhador rural no meio social a medida que também busca meios de orienta-lo quanto ao seu papel político na nova sociedade que surge. 
 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANDRADE, Manuel Correia. A produção do Espaço norte-rio-grandense. Natal, UFRN. Ed. Universitária, 1981.

AZEVEDO, Walclei de Araújo. Fatos pitorescos de Cruzeta. Natal: ed. do Autor, 2009.
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DANTAS, Eugênia Maria. Travessia Urbana. In.__ DANTAS, Eugênia; BURITI, Iranilson. (Org.) Cidade e região: múltiplas histórias. João Pessoa: Idéia, 2005.

FERRETTI, Sergio F. Religiões e festas populares. XIV Jornada sobre Alternativas Religiosas en América Latina. Buenos Aires. Setembro de 2007. p. 1-12. Disponível em <http://ebookbrowse.com/religiao-e-festas-populares-pdf-d102659909> Acesso em 26 mar. 2012. 

FILHO, Adauto Guerra. O Seridó na Memória do seu povo. Natal: Departamento Estadual de Imprensa, 2001.

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LEONEL, Guilherme Guimarães. Festa e sociabilidade: reflexões teóricas e práticas para a pesquisa dos festejos como fenômenos urbanos contemporâneos. Cadernos de História, Belo Horizonte, v.11. n.14, 1º Sem. 2009. p.1-23. Disponível em <http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoshistoria/article/view/1133> Acesso em 20 jun. de 2012.

MACEDO, Muirakytan K. de. A penúltima versão do Seridó. Natal: Editora Sebo Vermelho, 2005.

MEDEIROS, Maria Suelly da Silva. A produção do espaço das pequenas cidades do Seridó Potiguar. Dissertação (Mestrado em Geografia), Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005.

MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho. Bauru/SP: EDUSC, 2002. 

MORAIS, Ione Rodrigues Diniz; ARAÚJO, Marcos Antônio Alves de. Territorialidades e sociabilidades na Feira Livre da cidade de Caicó/RN. Caminhos de Geografia. 23 (17). p. 244-249. fev/2006. Disponível em <http://www.ig.ufu.br/revista/caminhos.htmil> Acesso em 20 jun. de 2011. 

MORAIS, Ione Rodrigues Diniz. As relações campo-cidade no sertão do Seridó. In.__ SILVA, José Borzacchiello da. et al. (Org.) Litoral e Sertão, natureza e sociedade no nordeste brasileiro. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2006.

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THOMSON, Alistair; FRISCH, Michael; HAMILTON, Paula. Os debates sobre memória e história: alguns aspectos internacionais. In: __FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Org.) Usos e abusos da História Oral. 8 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 

VEDANA, Viviane. “Fazer a feira”: estudo etnográfico das “artes de fazer” de feirantes e fregueses da Feira Livre da Epatur no contexto da paisagem urbana de Porto Alegre/RS. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.











segunda-feira, 2 de maio de 2011

A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL COMO PRÁTICA DE ENSINO DE HISTÓRIA LOCAL: nossa experiência no município de Cruzeta/RN


"Vozes, ao longo desses dois séculos,
procuraram, de início isoladas e depois
consistentes, fazer emergir outras possibilidades
de se ensinar História".

Elza Nadai



Para melhor elucidar o tema deste texto, inicio minhas reflexões trazendo para o cerne da discussão duas premissas importantes destacadas por Selva Guimarães e que aparentemente podem parecer óbvias para os profissionais de ensino de história. A primeira delas é que a história é uma “disciplina fundamentalmente educativa, formativa, emancipadora e libertadora” já que esta “tem como papel central a formação de identidades, a elucidação do vivido, a intervenção social e praxes individual e coletiva”. A segunda é que exercer a docência em história “é ter consciência de que o debate sobre o significado de ensinar história processa-se, sempre, no interior de lutas políticas e culturais”. (FONSECA, 2003. p. 89)
As proposições assinaladas acima servem bem para ilustrar o campo de atuação do ensino de história e suas imbricadas relações com a prática da Educação Patrimonial. Se o ensino de história pressupõe a constituição de identidades, a compreensão do passado, a interferência no plano social e pessoal dos indivíduos forjado na urdidura ideológica de interesses desarmônicos, em que circunstancia se pode falar de Educação Patrimonial como prática de ensino de história local? Para melhor situar o problema, torna-se necessário expor a finalidade a que se propõe o ensino de história local.
Para Circe Bittencuort “a história local tem sido indicada como necessária para o ensino por possibilitar a compreensão do entorno do aluno, identificando o passado sempre presente nos vários espaços de convivência – escola, casa, comunidade, trabalho e lazer -, e igualmente por situar os problemas significativos da história do presente”. [Grifos nossos] (BITTENCOUORT, 2009. p. 168)
Entendido, desse modo, como um caminho para se fazer apreender o “entorno do aluno”, isto é, o meio social em que este está inserido por meio da percepção das permanências e continuidades do passado no tempo presente, a história local tem como matéria-prima principal a investigação da memória e as configurações de identidades. Desse modo, “a questão da memória impõe-se por ser a base da identidade, e é pela memória que se chega à história local” (Idem, 2009. p. 169)

Estudantes em visita ao Centro Histórico de Cruzeta/RN durante oficina de Educação Patrimonial

Mas ao se trabalhar com a história local tem-se que atentar-se para alguns perigos que isto pode incorrer. Primeiramente a história local não pode contentar-se em reproduzir simplesmente “a história do poder local e das classes dominantes” que se limita a fazer conhecer “nomes de personagens políticos de outras épocas, destacando a vida e obra de antigos prefeitos e demais autoridades” (Ibdem). Segundo é que ela não deve pautar-se na “fragmentação rígida dos espaços e temas estudados, não possibilitando que os alunos estabeleçam relações entre os vários níveis e dimensões históricas do tema” inviabilizando a construção de relações entre o contexto local, o nacional e o global (FONSECA, 2003. p.154). Outra é que a história local não pode ser vista apenas como um “espaço reservado ao estudo dos chamados aspectos políticos” e econômicos que geralmente se utiliza dos vultos ilustres locais para se dar conta da origem, evolução e progresso do município ou região. (Idem) E mais ainda que esta não deve ser utilizada como pressuposto fidedigno para justificar uma “naturalização” e “ideologização” da vida social e política que sirva “para mascarar a divisão social, a luta de classes e as relações de poder e dominação que permeiam os grupos sociais”. (Ibdem)
Visto de outro modo, a história local deve vir sempre vinculada “à história do cotidiano ao fazer das pessoas comuns participantes de uma história aparentemente desprovida de importância e estabelecer relações entre os grupos sociais de condições diversas que participaram de entre-cruzamentos de histórias, tanto no presente como no passado”. (BITTENCUORT, 2009. p. 168) É nesta urdidura das relações sociais e das múltiplas possibilidades de se compreender as experiências do vivido e suas nuanças no tempo presente onde se inscreve o valor do patrimônio histórico-cultural e portanto, lugar comum dos elementos constituintes do discurso teórico-metodológico utilizados pela Educação Patrimonial hoje. 

Cena do cotidiano no Centro Histórico de Cruzeta cristalizada numa fotografia tirada no início da década de 1970


A relação mais fecunda e propícia entre ensino de história e Educação Patrimonial é que a segunda pode servir como metodologia apropriada para se chegar à compreensão do passado e forjar no aluno os sentimentos de pertencimento ao seu lugar a partir da utilização de procedimentos capazes de estabelecer relações identitárias entre este e a história local através da construção de saberes a cerca de seu patrimônio histórico-cultural. É neste sentido que Oliveira elucida a importância do patrimônio histórico como “uma produção cultural [que] encerra em si características que favorecem, facilitam a relação de ensino/aprendizagem por parte de quem o utiliza, por parte daqueles que o usam como fonte documental para a obtenção de conhecimento a respeito de uma determinada época, de determinadas condições socioeconômicas de produção de determinado bem, das relações de poder que demonstram que tal imóvel, por pertencer a uma determinada parcela mais abastada da sociedade, então, foi construído com material de melhor qualidade, pode explicar continuidades e mudanças ocorridas em determinados locais, entre várias outras potencialidades que estes documentos apresentam”. (OLIVEIRA, 2008. p. 98)
Mas o que vem a ser mesmo a Educação Patrimonial e qual sua finalidade? Segundo o Guia Básico de Educação Patrimonial lançado em 1999 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) a Educação patrimonial trata-se de “um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo. Busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua herança cultural, capacitando-os para um melhor usufruto destes bens, e propiciando a geração e a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação cultural”. (GUIA BÁSICO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL, 1999, p.7). “A Educação Patrimonial, portanto, pretende resgatar a relação de afeto entre a comunidade e seus patrimônios, estabelecendo entre eles um processo de aproximação, fazendo com que a comunidade tenha um sentimento de pertencimento em relação a seus bens patrimoniais, desejando, assim, seu regate e preservação”. (PIZANI, apud. SOARES, 2008. p.32)
Enquanto ação educativa, a Educação Patrimonial se fundamenta em quatro etapas metodológicas contínuas: a Observação que se baseia em exercícios de percepção visual e sensorial com o objetivo de identificação do objeto de estudo, sua função e significado,o Registro que busca desenvolver atividades de registro das percepções efetuadas por diversas maneiras possíveis (fotografias, desenhos, entrevistas, vídeos, maquetes e etc.) com a finalidade de fixação do conhecimento percebido, sua análise crítica e o desenvolvimento da memória e do pensamento intuitivo e operacional; a Exploração que consiste na análise do problema, no levantamento de hipóteses, pesquisa em outras fontes (arquivos, bibliotecas, jornais, entrevistas), postura crítica e etc., e por último a Apropriação que busca desenvolver a capacidade de auto-expressão, participação criativa e valorização do bem cultural através de recriações, releituras ou dramatizações deste propiciando um envolvimento afetivo e a internalização dos saberes apreendidos. 

Jovem participante da Oficina de Educação Patrimonial entrevistando antiga moradora da Cidade de Cruzeta

Em vista disto, a apropriação da metodologia da Educação Patrimonial pelo ensino de história “não busca apenas estimular a conservação física de lugares históricos, como prédios públicos, monumentos, praças, bens naturais, entre outros, [mas] busca também resgatar a memória e os valores que levaram a comunidade a reconhecer aquele personagem, objeto ou prédio histórico como patrimônios de uma coletividade (PIZANI, apud. SOARES, 2008. p.32) a medida que esta vai possibilitando caminhos de se apreender e interpretar o passado, isto é, de tornar a história local inteligível a partir do conhecimento e da apropriação do patrimônio histórico-cultural do lugar. Neste ponto é importante citar ainda os “lugares da memória” como locais apropriados para se “encontrar os esquecimentos, os lapsos de memória, não circunstanciais, mas obrigatórios, que abrigam determinadas posições e, mais uma vez, encobrem variadas disputas”. (OLIVEIRA IN OLIVEIRA E CAIMELLI, 2008. p. 98)


O PATRIMÔNIO HISTÓRICO CULTURAL
COMO DOCUMENTO PARA O ENSINO DE HISTÓRIA


Como todo profissional de história sabe, “o documento é a base para o julgamento histórico” (KARNAL E TATSCH, 2004. p.41). Isso é verdade por que se todos os documentos produzidos por um determinado período histórico fossem destruídos, nenhum historiador poderia dizer nada sobre ele. O mesmo acontece com uma civilização que nada deixou de vestígios. Assim, segundo Silva “fonte histórica, documento, registro, vestígio são todos termos correlatos para definir tudo aquilo produzido pela humanidade no tempo e no espaço [ou ainda] a herança material e imaterial deixada pelos antepassados que serve de base para a construção do conhecimento histórico”. (SILVA, 2008. p. 158)
É nesta vasta conceituação de documento onde o patrimônio histórico cultural se insere. Definido corriqueiramente “como o complexo de monumentos, conjuntos arquitetônicos, sítios arqueológicos e parques nacionais de determinado país ou região que possui valor histórico e artístico e compõem um determinado entorno ambiental de valor patrimonial” (Idem, 2008. p. 324), o patrimônio cultural, como atualmente costuma ser mais chamado, não se refere apenas a “um conjunto selecionado de objetos históricos, monumentos representativos da memória nacional, centros históricos, etc., mas também os saberes populares, os artesanatos, as crenças e as tradições, os rituais e festas religiosas, os processos de trabalho e produção, as relações sociais, familiares e com o meio ambiente, as formas de organização econômica, política e tecnológica e, ainda, todos os aspectos que a cultura viva da população pode assumir e criar” (GRUNBERG IN BARRETO. 2008. p.37-38), ou seja, “não se restringe á produção material humana, mas abrange também a produção emocional e intelectual.  [Resumindo] (...), tudo o que permite ao homem conhecer a si mesmo e ao mundo que o rodeia pode ser chamado de bem cultural”. (SILVA, 2008. p. 325)

Aspecto atual do Centro Histórico de Cruzeta

Visto desta forma, o patrimônio histórico cultural é uma importante lente por onde se torna exequível vislumbrar as acepções de passado e as apreensões de futuro de um determinado grupo ou sociedade. Isto é possível porque este é composto por elementos produzidos num determinado contexto sócio-cultural como parte integrante do processo histórico vivenciado pelos grupos e sociedades situados cada qual em seus espaços e esferas dinâmicas de influxos e afluências ao longo de sua história e que por um motivo ou outro mereceram ser preservados às gerações seguintes. Assim, ao se constituir em elementos históricos e geograficamente situados e revestidos de uma “áurea sacralizante” pelos indivíduos ou grupos sociais que o elegeram, ele acaba por atribuir sentidos e valores a estes lugares ao mesmo tempo em que os representam e os definem, moldando-os de características próprias e atribuindo a estes uma identidade comum ainda que não menos conflitante.
A força desta prerrogativa está no fato de que o patrimônio histórico não possui valor em si mesmo e sim se compreende como parte de um processo histórico de produção cultural movido por interesses múltiplos e divergentes seja em escala nacional ou local. Como observa Moura, “feito para lembrar ou consagrado a posteriori como tal, interfere na dialética da memória á medida que dita o que deve ser lembrado, sendo, pois, expressão da memória de um grupo (...) Assim, compreender o processo histórico de produção do patrimônio significa entender como determinados valores se sobrepuseram a outros, entender por que alguns bens foram institucionalizados e outros não (...)”. (MOURA, 2009. p. 56)
Este elemento polissêmico do patrimônio é importante para o ensino de história porque permite a apreensão dos múltiplos valores e significados que cada grupo social ou indivíduo atribui a este tornando possível a interpretação e a depreensão da indiosincrasia individual a medida que cada pessoa tece suas relações próprias e coletivas com estes bens culturais permitindo, com isto, a percepção de memórias heterogênicas e diferenciadas. Sendo assim, o ensino da história local a partir do estudo do patrimônio histórico-cultural deve acentar-se nas diversas memórias disseminadas nos mais diferenciados sujeitos sociais para que se possa apreender delas as diversas versões e olhares que a experiência histórica local se fundamenta e se constitui, não devendo, sob pena de cair na homogeneidade histórica concebida pela concepção oficial de memória e história, está alicerçada na visão dominante de apenas um segmento da sociedade ou de determinados indivíduos que tomaram para si a alcunha de “autênticos repositórios” da memória social. 

Aspecto dos antigos carnavais de Rua em desfile no Centro Histórico de Cruzeta. Foto tirada no início de 1960


Assim como complementa Gonçalves “os patrimônios culturais são estratégias por meio das quais grupos sociais e indivíduos narram sua memória e sua identidade, buscando para elas um lugar público de reconhecimento, na medida mesmo em que as transformam em ‘patrimônio’. Transformar objetos, estruturas arquitetônicas e estruturas urbanístísticas em patrimônio cultural significa atribuir-lhes uma função de ‘representação’, que funda a memória e a identidade. (...) Os patrimônios são, assim, instrumentos de constituição de subjetividades individuais e coletivas, um recurso à disposição de grupos sociais e seus representantes em sua luta por reconhecimento social e político no espaço público”. (GONÇALVES, 2002. p.121-122)
Mas, a mais profícua relação que podemos estabelecer entre o patrimônio, a memória e a didática da história, é que tanto o patrimônio que insubsiste sem seu significado para a memória social, quanto a memória que se utiliza do patrimônio para se expressar, podem ser utilizados como documentos para o ensino de história. Sobre isto é que reflete Oliveira: “os monumentos são documentos e, portanto, passíveis de leituras, assim como os documentos não são portadores da verdade, ou representam a verdade pura e simplesmente. São constructos com uma função bem definida, portadores de uma concepção de memória e de história, muitas vezes criados para se fazerem únicos na identificação de uma memória e uma história oficial. O papel do historiador e do educador como agente revelador dessas operações é fazer aflorar e compreender estas construções, estas memórias e histórias (as vencidas, a dos excluídos, etc), não simplesmente num processo de troca pela memória/história oficial, mas num processo de esclarecimento”. (OLIVEIRA IN OLIVEIRA E CAIMELLI, 2008. p. 97)

Clube de Mães do Município de Cruzeta. Fotografia tirada na década de 1960. O trabalho doméstico feminino esconde em sua tessitura um espaço reservado pelas sociedades Ocidentais ás mulheres
Desse modo, ao perceber o patrimônio histórico cultural como uma fonte documental por onde o passado pode se tornar inteligível, tem-se que levar em consideração as concepções de memória e de história que este encerra, já que nenhum documento histórico está isento de imparcialidade, ou seja, não possui estatuto de “histórico” em si mesmo, representando, portanto, as reminiscências de determinado grupo social ou de indivíduos que se convencionou preservar pela história.


AS OFICINAS DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E SEUS DIÁLOGOS COM A HISTÓRIA LOCAL: A EXPERIÊNCIA NO MUNICÍPIO DE CRUZETA/RN


A idéia de realizar oficinas de educação patrimonial como prática sensibilizadora de ensino para alunos de nível fundamental e médio do município de Cruzeta partiu de uma observação empírica e de um olhar perscrutador sobre a situação da consciência histórica e da identidade cultural que grande parte dos alunos da rede pública de ensino estabeleciam com o próprio lugar onde vivem. Esta visão do local se edifica quase sempre no sentimento de que o espaço onde habitam não possui “história” e que, portanto, quase nada restou do seu passado.
O cerne desta visão torna-se bastante preocupante, pois ela mesma sustenta a idéia de que “se não há história para contar, também não há o que se preservar”. Esta compreensão do passado demonstra a atitude de indiferença e apatia que muitas pessoas do local têm se portado diante da sua herança cultural, e de forma mais acentuada ainda, diante da defesa e preservação do patrimônio histórico cultural cruzetense, já que os vínculos de afetividade com o local onde vivem são também afetados por estes sintomas sociais que os fragilizam.
Uma explicação para este problema podemos encontrar na supervalorização que o ensino formal de história atribui à história nacional e global em detrimento da história local, quase nunca contemplada no planejamento anual dos conteúdos históricos das instituições públicas e privadas de ensino fundamental e médio no Brasil. A isso, soma-se ainda, os escassos projetos de extensão e os irrisórios recursos empregados em ações pedagógicas que visem desenvolver iniciativas educativas a partir do ensino da história local e da preservação do patrimônio histórico cultural de cada comunidade. No município de Cruzeta/RN esta realidade não é diferente, ainda que existam professores que mesmo se valendo dos poucos recursos disponíveis para viabilizarem suas atividades de extensão e utilizando-se de todo esforço possível, conseguem obter algum resultado satisfatório através de suas ações pedagógicas. Mas estas são, porém, mínimas e quase sempre nunca continuadas.
Um outro aspecto preocupante deste problema tem sido o contínuo descaso com o que o poder público tem se portado diante do patrimônio histórico cultural do município, não se munindo de qualquer instrumento legal que concorra à preservação e promoção de seus bens culturais, expondo-os, grosso modo, ao desgaste e a depauperação do tempo. A Lei Orgânica do município de Cruzeta promulgada em março de 1990 chega mesmo a prescrever como sendo da competência municipal a promoção e a proteção do “patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico local” (LEI ORGÂNICA DO MUNICÍPIO DE CRUZETA, 1990. Cap. II. Art. 5º. In. IX) e ainda atribui à Câmara Municipal o estatuto de legislar sobre assuntos de interesse local, inclusive aqueles que diz respeito à “proteção de documentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, como os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos do Município” e mais ainda de “impedir a evasão, destruição e descaracterização de obras de arte e outros bens de valor histórico, artístico e cultural” do local. (Idem, Cap. II. Sec. III. Art. 11. In.I. Al. b e c).
No entanto, a verdade sobre isto é que nada até hoje foi feito por parte do poder público local que garanta a observação e execução do que pede a Lei Orgãnica Municipal no que diz respeito às questões do patrimônio histórico cultural do município, sendo, portanto, negligenciadas pelas autoridades locais que insistem em calar-se diante desta questão e assistir impassíveis a ininterrupta destruição e descaracterização de nosso patrimônio histórico e as vezes até tornando-se mentores de sua própria destruição: ninguém pode esquecer quem foram os verdadeiros responsáveis pela “reforma” do prédio da Câmara Municipal, uma das únicas edificações públicas que conservava ainda até os meados da década passada parte da decoração de sua antiga fachada que resultou em sua total descaracterização. 

Fachada da Câmara Municipal de Cruzeta antes da "reforma"
Diante destas atitudes no mínimo agressivas e desrespeitosas ao patrimônio histórico municipal revide-se com uma pergunta pertinente que cabe ser feita aqui: onde fica a observação da Lei Orgânica Municipal no que rege os assuntos de interesse local voltados às questões do patrimônio cultural cruzetense? Algum dia alguém terá que responder por isso. Mas não cabe neste texto prestar queixas das irresponsabilidades do poder público. Entretanto, é nosso dever enquanto cidadãos cruzetenses conscientizar a população local para o seu exercício de cidadania que tem na defesa, preservação e apropriação de seus bens culturais uma baliza fundamental dos direitos do cidadão brasileiro.
Foi sem dúvidas em vista desta finalidade mais abrangente que executamos entre os dias 13 e 18 de Setembro de 2010 no município de Cruzeta o projeto Patrimônio, memória e Educação: descobrindo nossos tesouros de identidade cujas as ações educativas foram realizadas por meio de oficinas de Educação Patrimonial e estudo de meio voltadas aos adolescentes e jovens estudantes locais.
Como nosso interesse neste texto é mostrar as variadas possibilidades de diálogo entre as práticas de Educação Patrimonial experienciadas e o ensino de história local, gostaríamos de começar tecendo esta discussão a partir de algumas colocações a cerca das concepções de história e memória correntes atualmente no município de Cruzeta e que tem servido como balizas para a escrita da história local.
Inicialmente podemos dizer que o conhecimento histórico se constrói a partir de uma necessidade insurgente que não deixa de ser em si mesmo um objeto de análise da história e que vem a atender a demanda de novos interesses individuais e coletivos, seja ele produto de um desdobramento acionado pelas experiências vividas no bojo das relações sociais e interpessoais, seja por uma tomada de consciência frente a uma realidade que se almeja emancipadora e transformante. Assim, ao ser publicado em 1971 o livro “Noções de Geografia e História do Município de Cruzeta” de autoria da professora Terezinha de Jesus Medeiros Goes e que ainda nos serve de referência particular para o estudo da história local, grande foi a euforia dos cruzetenses ao receber tão “ilustre obra”, o que no contexto atual não deixa de ser para muitos cruzetenses “uma obra ultrapassada”. 

Ao compartilhar as concepções de história e geografia de sua época, o livro Noções de Geografia e História do Município de Cruzeta não pode ser interpretado fora de seu contexto de produção, isto é, sem atentar-se para a análise dos fatores, conjunturas e ideologias que possibilitaram a sua escrita e publicação sem incorrer no mais grave pecado dos historiadores, isto é, no erro do anacronismo histórico. Pois como elucida Silva “o ato de contar, descrever e analisar o passado depende da sociedade e do período de cada contador. Tudo na história deve ser pensado em seu tempo, isto é a historicidade”. (SILVA, 2008. p. 183) Reconhecido ainda como a obra mestra que narra a história oficial do município de Cruzeta, o livro da professora Terezinha Medeiros Goes representa um importante documento de nossa história, constituindo-se, desse modo, uma versão da história local que nos últimos anos tem sido questionada por outros pesquisadores.

  Esta reflexão ajuda a entender aquilo que podemos chamar de um “surto revisionista” na história do município de Cruzeta/RN, que tem mobilizado nos últimos anos esforços de professores e alunos da rede pública municipal de ensino na busca da reconstrução de um passado silenciado pela história oficial, ou seja, das memórias e vivências daqueles sujeitos históricos “que não se encontram nos livros que enaltecem os vultos, mas que consideram como produtores de história quem realmente o é: o povo”. [Grifos nossos] (COSTA & ZEFERINO, 2008. p. 13) 
Foto de uma sapataria localizada no centro urbano de Cruzeta na década de 1960. Com o entendimento de que "os homens comuns" também fizeram história, outros personagens antes considerados "incógnitos" começam a aparecer na trama da história local nos últimos anos

Esta nova “áurea de reconstrução da história local” no município de Cruzeta/RN pode ser percebida como um desdobramento de um projeto político ideológico mais amplo vivenciado pela sociedade brasileira a partir dos anos 1980 que se firma nos ideais de sociedade democrática e plural forjando a tessitura da emergência de se fazer ouvir “as vozes” daqueles sujeitos sociais que foram marginalizados ou “silenciados” pela história oficial fundamentada nos feitos dos “grandes vultos”, quase sempre pertencentes e identificados a uma elite político-econômica local dominante.
O efeito disto tem sido a publicação de novos trabalhos demonstrativos de práticas pedagógicas ou de pesquisas in loco que se insinuam na valorização da memória social e que buscam lançar “um novo olhar” sobre o entendimento da história local seja resgatando das “lembranças dos nossos avós” a matéria-prima para a reconstrução desta história, como a iniciativa do livro Cruzeta, uma cidade repleta de memórias e poesias elaborado por professores e alunos da Escola Estadual Joaquim José de Medeiros no ano de 2008, seja através da apropriação de novas versões e múltiplos olhares “que se debruçam sobre a gênese de fatos, de sabedorias explícitas e implícitas de cruzetenses (...) [para retratar] ocorrências plurais e oferecer-nos subsídios valiosos que enriquecem os nossos saberes sobre a história de um povo de tanto mistério” (MEDEIROS, 2010. p. 09), caso muito particular do livro Coletânea de entrevistas: espelho da história e cultura cruzetense publicado por professores e alunos da Escola Municipal Cônego Ambrósio Silva em novembro de 2010, ou ainda se valendo das “memórias narradas” de “nossos conterrâneos” que resgatam “fatos pitorescos de Cruzeta, através do relato de casos interessantes e autênticos, que revelam o caráter nobre e irreverente do legítimo sertanejo”, (AZEVEDO, 2009. p. 07) caso bastante específico do livro Fatos pitorescos de Cruzeta, lançado em Outubro de 2009 pelo professor e historiador cruzetense Walclei de Araújo Azevedo. 

As questões levantadas acima nos servem para apontar um outro mote que talvez possa parecer implícito, isto é, a função a que se atribui à história. Percebida como indissociada da memória, a função geral da história nas obras citadas acima é situar as experiências de vidas dos sujeitos sociais nos mais variados contextos e épocas em que estes viveram, valorizando o ato de lembrar o passado como elemento instituinte da história.  Para Silva a função da História quanto ciência dos Homens no tempo, para se utilizar da definição do historiador Marc Bloch, “é fornecer explicações para as sociedades humanas, sobre suas origens e as transformações pelas quais estas passam. Essas explicações, por mais diversas que sejam, são feitas sempre sobre uma base comum, o tempo, a temporalidade” (SILVA, 2008. p. 183-184).
A função à que se presta a história, tal como a entende Silva e a importância da memória como elemento instituinte do vivido, visão de história mais difundida no município de Cruzeta, nos são válidos para demonstrar os possíveis diálogos que podemos estabelecer entre as práticas de Educação Patrimonial e o ensino da história local a partir da utilização do Patrimônio Histórico Cultural como meio de se compreender o passado. Para melhor ilustrar estas possibilidades é que tomaremos como exemplo a experiência vivenciada no Centro Histórico de Cruzeta durante as oficinas de Educação patrimonial.

Estudantes pesquisadoras do projeto em visita ao DNOCS durante caminha no Centro Histórico de Cruzeta
 Planejadas para serem executadas em quatro momentos distintos, as oficinas de Educação Patrimonial foram realizadas em uma semana de atividades. O primeiro momento foi vivenciado com a realização de palestras, alem de outras atividades lúdicas, que envolveram temas voltados às questões da cultura, da identidade, do patrimônio cultural no âmbito local e nacional, das políticas de preservação e conservação deste no Brasil e da metodologia da Educação patrimonial que fundamentaram todo o instrumental teórico utilizado durante as oficinas para a aplicação em campo das atividades de pesquisa e estudo. Já o segundo momento foi executado com a aplicação da metodologia da Educação Patrimonial e a realização da pesquisa e registro do Patrimônio Cultural no Centro Histórico de Cruzeta, ocasião que será mais explorada neste texto. A etapa seguinte foi vivenciada pelos participantes por meio da socialização e apresentação dos resultados das pesquisas realizadas na experiência passada e, por último, tivemos a realização de uma viajem de estudo (city tuor) a alguns lugares importantes para a compreensão da história e cultura da região do Seridó potiguar, momento em que foram visitados o Parque multitemático da Mina Brejuí e o museu que este integra, ambos localizados na cidade de Currais Novos e ainda o Museu do Sertanejo e a Igreja Barroca do Rosário, situados no município de Acari. Mas é em sobremaneira a segunda etapa destas atividades que nos interessa neste texto.

Partindo da análise feita por Horta que considera os Centros históricos como lugares importantes para se estudar e entender a história local “porque ajudam a estabelecer e compreender as relações fundamentais entre o presente, o passado, e as mudanças ocorridas nos modos de vida das pessoas que neles viveram, assim como nas próprias cidades”, (HORTA, 1999. p. 26), durante a execução do projeto educativo foi realizado de antemão um mapeamento prévio das principais evidências materiais e históricas possíveis de serem constatadas no Centro Histórico de Cruzeta, isto é, monumentos, edificações e construções que conservavam ainda integralmente ou parte de sua arquitetura original e logo em seguida elaborado um mapa demarcando as áreas do entorno circunscrito. Além destes elementos, também foram identificadas evidências da cultura imaterial que se manifestam no cotidiano ou nas ocasiões festivas e/ou de lazer da população local que possui o Centro Histórico como cenário principal de sua ocorrência. Ainda para facilitar o trabalho em campo dos alunos participantes do projeto, foram elaborados e distribuídos materiais de apoio que servissem como instrumentos didáticos de pesquisa.
Assim, seguindo uma sistemática própria, foram constituídos dois grandes grupos de 20 pesquisadores perfazendo o total de 40 ao todo, e estes, por sua vez, subdivididos em dois menores compostos por 10 alunos cada qual. Para melhor estruturar os trabalhos a serem realizadas passamos a atribuir nomes e tarefas a cada um deles. Desse modo, o Grupo denominado A se dividiria em duas zonas e pesquisaria as evidências da cultura imaterial identificadas no Centro Histórico e, do mesmo modo ocorreria ao Grupo B, que teria o conjunto subdivido em duas zonas, mas que pesquisaria o Sítio Histórico como um todo.
Mapa elaborado para servir de orientação aos estudantes pesquisadores

Também é Horta quem nos fornece uma melhor definição de Sítio ou Monumento Histórico, apresentando-os como “fragmentos do cenário do passado, elementos de uma paisagem que sofreu modificação ao longo do tempo, e funcionam como chaves para a reconstituição das sucessivas camadas da ocupação humana e dos remanescentes que chegaram até nós”. (HORTA, 1999. p.17). O estudo e apropriada exploração destes remanescentes materiais nos revela um precioso meio de se compreender o passado a partir do contato direto, da observação e de sua análise crítica. Neste ponto é importante elucidar as orientações propostas pela metodologia da Educação Patrimonial no que aludi às suas etapas e recursos empregados. Destarte, para servir de orientação didática para o estudo de campo realizado durante as visitas ao Centro Histórico de Cruzeta, foram confeccionadas três fichas básicas de apoio, quais sejam:
·         a Ficha de Identificação do Edifício com o objetivo de orientar o pesquisador na retenção de informações a cerca de antigos edifícios e construções no que diz respeito as suas características gerais, tais como, usos, estado de conservação, ocupação, primeiros moradores, período de construção, importância para a comunidade e diagnóstico geral do imóvel;
·         a Ficha de Identificação do Sítio Histórico com a finalidade  de instruir a cerca da descrição geral do Centro Histórico pesquisado em observação aos aspectos como localização, paisagem natural, meio ambiente, marcos edificados, características físicas, funções, usos e significados do local atualmente (Para que foi construído? Para que serve? E qual(s) o seu significado(s) para a comunidade?), além de fatores como a história e o perfil socioeconômico de seus habitantes;
·         e por último, a Ficha Explorando o Sítio Histórico com o intuito de  instigar as percepções e análises críticas dos alunos pesquisadores sobre a história do Sítio Histórico pesquisado propondo questões como a descrição dos antigos habitantes da área (personagens da história mais conhecidos e também os “anônimos”), suas formas de trabalho, ocupações, comportamentos e origens para responder a questão “quem viveu aqui?”, assim também como outros questionamentos que buscavam explorar as razões históricas que contribuíram para a ocupação do lugar (“Por que escolheram viver neste lugar?”), os diferentes usos deste espaço pela população local (“Para que foi usado este local?”), seus aspectos físicos no passado (“Como era este lugar no passado?”), a vida cotidiana de seus habitantes em outras épocas (“Como era viver aqui no passado?”), as transformações sofridas em decorrência de seu processo histórico e etc. 
A utilização do material didático de apoio é um instrumento pedagógico imprescindível no estudo de campo, pois ajuda os estudantes pesquisadores na construção de seus conhecimentos, uma vez que serve como guia para suas reflexões ao estimular a análise crítica sobre o meio, sendo utilizado também como forma de acompanhar o processo de ensino-aprendizagem do aluno, ainda que em alguns casos, não substitua a presença mediadora do professor. Neste contexto, mesmo munidos do material de apoio e do embasamento teórico absorvido no primeiro momento das oficinas, os grupos de pesquisadores foram supervisionados por dois guias de campo durante os passeios de estudo ao Centro Histórico de Cruzeta que acompanharam de perto todo o processo de construção do conhecimento. Mas para melhor problematizar nossa experiência de Educação Patrimonial e Ensino de História Local tendo como cenário e objeto de estudo o Centro Histórico de Cruzeta, iniciaremos, pois, a discussão, relacionando algumas narrativas a cerca da história do sítio pesquisado e suas possíveis utilidades para a prática do ensino de história.
O Centro Histórico de Cruzeta está repleto de memórias e narrativas envolvendo principalmente os modos como a população local se apropriou de seus bens culturais patrimoniais ao longo do tempo resignificando-os a cada geração. Nenhum adolescente que se interessou em saber de seus avós como aconteciam os namoros na cidade antigamente estará ignorante da importância que possuía o Mercado Público Municipal construído no início da década de 1930 para esta prática social, além, é claro, de sua utilidade primordial como centro comercial do local. Ou aqueles mais curiosos ainda não deixarão de saber que a Escola Estadual Otávio Lamartine construída em 1935 para servir de primeira instituição de ensino formalizado às crianças do crescente povoado (Cruzeta passaria à Vila em 1937 e à categoria de Cidade em 1953) serviu também de sala de cinema para a exibição de filmes na década de 1960, de palco para apresentações de peças teatrais, ou de salão para os bailes e festas sociais até a década de 1970. 

Mercado Público Municipal de Cruzeta em reforma em meados da década de 1950
 Além destes exemplos outros poderiam ser citados aqui, como o do Açude Público de Cruzeta construído em 1929 no perímetro sul do centro da cidade com o objetivo de amenizar as problemáticas da seca no semi-árido nordestino, mas que nos fins da década de 1960 e no decorrer da de 1970 foi utilizado como cenário principal da festa “Manhã de Sol” onde a "beira” de suas margens era “transformada em praia” e recebia além de banhistas e desportistas da população local (as “manhãs de sol” eram freqüentemente comemoradas com competições de “remo, nado ou salto”), outra pessoas provenientes das cidades circunvizinhas. (GOES, 1971. p. 68-69)
Os passeios de canoa durante as manhãs de sol no Açude Público era algo bastante apreciado pelos banhistas locais. Fotografia tirada no final da década de 1960

















Tendo em vista estas narrativas já construídas e difundidas oralmente na comunidade, nosso trabalho de visita ao Centro Histórico de Cruzeta buscou desenvolver por meio da observação visual e sensorial do meio pesquisado, exercício que abrange a primeira etapa da Metodologia da Educação Patrimonial, estimular nos alunos uma “percepção histórica” destas memórias a partir do olhar do historiador sobre os fatos culturais observados, isto é, a visão que percebe as manifestações do Patrimônio Histórico Cultural como resultado de um processo histórico mais abrangente (visão macro da história) em observação a seus diversos ritmos de duração e aquela que busca enfocar seus aspectos mais particulares em decorrência da dinâmica do lugar (visão micro da história), mas que, de modo geral, sem deixar de estabelecer relações sempre quando possíveis entre o local, o nacional e o global. Desse modo, observar as configurações atuais do Centro Histórico de Cruzeta, seus elementos constitutivos, seus aspectos físicos e simbólicos, seus usos e significados a partir do olhar do historiador, é perceber que este possui uma historicidade à medida que se insere numa dinâmica cultural que ultrapassa gerações e épocas, que interrelaciona-se com outros espaços e temporalidades, ainda que suas representações se renovem sempre na contemporaneidade.
Com esta orientação partimos da idéia de que a composição inicial do núcleo urbano de Cruzeta formado fundamentalmente a partir da construção do Açude Público em 1929, a edificação da Capela de Nossa Senhora dos Remédios em 1921, além de outras escassas construções para uso residencial e posteriormente comercial erguidas neste período, ou seja, as “sementes de civilidade” para se dar início a construção de uma cidade, não surgiram por um acaso, mas sim, só pode ser historicamente entendido se situado na tessitura de uma conjuntura histórica mais ampla que extrapola a lógica da dinâmica local, não sendo por tanto produto apenas da ação de alguns indivíduos, que por motivo ou outro, agiram voluntariamente sobre esta circunstância. Assim, entender as circunstâncias históricas que contribuíram para a construção do Centro Histórico de Cruzeta é situá-lo no passado que nos permite responder a questão por quê escolheram este local para se fundar um núcleo urbano no meio do sertão seridoense potiguar nos alvores do século XX.
Foto da celebração da Missa Campal realizada em 1921 em frente a capela em construção de Nossa Senhora dos Remédios que marca o nascimento do povoado de Cruzeta

A resposta mais convincente para esta indagação seria aquela que se detivesse a explicá-la a partir dos fatores socioculturais, políticos e econômicos possíveis de serem observados na trama histórica, o que dentro do contexto estudado poderíamos descortinar neste período uma região cuja elite político-econômica local buscava afirmar nos valores de civilidade e progresso representados pela vida racional nas cidades e pelo desenvolvimento do comércio e da indústria circulantes no meio político e intelectual nacional o caminho mais curto para se chegar à modernidade, aqui entendido em oposição a um “sentimento de ruptura com o passado” de atraso, de dificuldades e de estigmas provocados pelas adversidades da natureza e da sociedade que vinham “castigando” as populações locais desde tempos precedentes.
Esta busca pela modernização do interior do país, isto é, os chamados sertões brasileiros, representa o desejo ou o esforço das elites político-econômicas nacionais em “atualizar” o Brasil com o ritmo de desenvolvimento vivenciados neste período pelas nações européias ou pelos Estados Unidos, num momento em que os espaços territoriais conhecidos por sertões passaram a ser vistos como um fator de impedimento para a modernidade da nação. A problemática das secas no semi-árido nordestino era um destes fatores que mais citavam preocupações nos meios políticos. A construção do Açude Público de Cruzeta foi um desdobramento desta circunstancia histórica inicial, o que não impediu que as elites locais não utilizassem deste benefício para assegurar seus privilégios e domínios na região. Não se pode ensinar uma história da Cidade de Cruzeta do início de sua fundação até os fins de 1970 sem referir-se a importância que a cotonicultura na sua produção e experimento das fibras e sementes do chamado “algodão mocó” representou para o próprio desenvolvimento da cidade. Para cá vieram muitos homens e famílias de outras localidades da região e até de outros Estados circunvizinhos trabalharem na construção do açude, nas usinas de beneficiamento ou nos campos cultiváveis do algodão mocó que passaram a construir residências próximas ás imediações do Açude Público dando continuidade ao processo de edificação do centro histórico da cidade. É importante esclarecer neste ponto que isto não diminui a importância das ações deliberadas por outros indivíduos que agindo no meio das circunstâncias mais gerais, também foram movidos por outros motivos adversos a desempenharem suas funções dentro deste processo histórico, exemplo bastante conhecido na cidade da figura de Joaquim José de Medeiros, que ao doar as terras recebidas por herança para o assentamento do povoado que passou a se chamar Cruzeta veio, então, a ser reconhecido pela comunidade como o seu fundador. 

O perigo em atribuir a um indivíduo ou a um grupo circunscrito de pessoas as honras de fundadores de uma cidade se incidi sobre a interpretação reducionista da realidade que desconsidera como importante o trabalho e as ações de indivíduos de outros grupos ou matizes sociais, levando a crer que estes não fizeram história e por tanto não merecem ter suas memórias preservadas às futuras gerações. A verdade é que ninguém funda uma cidade sozinho. Cada sujeito histórico dentro da lógica de seu meio social e cultural, desempenha as funções que lhes são próprias. Se levarmos em consideração esta reflexão sobre a história oficial do município de Cruzeta poder-se-ia dirigir-lhe um questionamento: em que lugar desta história ficou reservado o espaço daqueles homens que labutaram de sol a sol durante quase 20 anos para construir nosso principal reservatório de água, o açude público, acontecimento histórico dos mais importantes para o surgimento do povoado? Certamente estes não mereceram menções honrosas ainda que obtivesse algum reconhecimento como chegou a relatar Terezinha de Medeiros Góes em seu livro: “de igual importância nos princípios do nosso povoado foi a colaboração dos homens humildes, incógnitos, que em centenas aqui alojados, sob os ardores de um sol causticante, com seus rostos banhados de suor, construíram os alicerces desta cidade que os homens mais esclarecidos do passado edificaram (...)” [Grifos nossos](GOES, 1971. p. 55). Para estes homens “incógnitos” a nossa história oficial lhes reservou o silêncio.
Foto da construção do Açude Público tirada em meados da década de 1920. Aos homens que construíram a base de nossa cidade lhes seriam reservado o "silêncio" na história oficial de Cruzeta

As reflexões tecidas acima servem para orientar o leque de possibilidades que o uso do Patrimônio Histórico Cultural como documento histórico abre para se ensinar a história local. Tomando ainda como exemplo nossa experiência de Educação Patrimonial no Centro Histórico de Cruzeta, buscamos explorar uma abordagem da história que estimulasse nos alunos a percepção das permanências e descontinuidades em suas variações temporais a partir da análise e exploração do Patrimônio Histórico identificado. Portanto, entendido que o Centro Histórico de Cruzeta foi construído para atender as necessidades da vida em sociedade consolidando a qualidade humana da sociabilidade dentro de uma circunstância histórica mais abrangente, não poderíamos deixar de problematizar que seus usos e apropriações nem sempre foram os mesmos ao longo do processo histórico local.
Ao buscarmos explorar mais a fundo este enfoque teórico podemos estabelecer diante das fontes históricas disponíveis (fotografias antigas e relatos de memórias) pelo menos três recortes temporais para explicar os diferentes usos e significados que as populações locais fizeram deste espaço. O primeiro deles corresponde ao período de Povoado (1921 a 1937), momento em que um pequeno núcleo urbano é formado em torno da Capela de Nossa Senhora dos Remédios (1921), do Mercado Público Municipal (1931), do grupo Escolar Otávio Lamartine (1935) e nas margens do Açude Público (1929), mas que ainda se confunde com a própria paisagem rural dispersa nos arrabaldes.
O segundo recorte temporal pode ser feito no período em que o povoado passa a categoria de Vila (1937 a 1953) onde o Centro Histórico incorpora outras feições externas como a instalação do sistema de iluminação elétrica em 1939 que só duraria até o ano de 1943 (GOES, 1971. p. 60), a pavimentação das ruas principais com plano de arborização. Mas, contudo, mantêm as características duma comunidade tipicamente rural, mesmo que já em processo de urbanização. O ambiente predominante da sociabilidade local ainda continua sendo a zona rural, espaço mais habitado e disputado pelas populações locais. 
A vida boêmia nos bares do centro urbano de Cruzeta. Fotografia tirada na década de 1960. O lazer semanal consagraria o centro urbano como espaço ideal para a sociabilidade na vida na cidade
O terceiro recorte pode ser situado na passagem de Vila para a categoria de cidade (1953 aos dias atuais), em que o Sítio Histórico passa a representar o “coração da cidade” e o centro da sociabilidade com a instalação das entidades de utilidade pública (a construção da Prefeitura e da Câmara Municipal é desta época), do Posto de Saúde (1958), do Grêmio Lítero Esportivo Cruzetense (1959) responsável em promover as festas sociais, da instalação da energia de Paulo Afonso (1966), momento em que as ruas principais perdem sua arborização, do serviço de abastecimento d’água na cidade (1969), da construção da Praça João de Góes (1969), da instalação do prédio dos Correios e Telégrafos (1969), dentre outros benefícios. 
Parque Infantil sendo inaugurado no Dia da Criança em meados da década de 1970. A cidade reservaria um lugar importante para estes espaços de sociabilidade

Sobre a vida na cidade registrou Terezinha Góes em 1971: “há progresso cultural. O povo começa a interessar-se pelas técnicas, inventos e conquistas do homem moderno. (...) A pacatez é característica do nosso povo. Poucos crimes tem-se registrado aqui e esses poucos, em sua maioria, foram praticados por estranhos” (GOES, 1971. p. 71) Embora estes três recortes possam ser situados com uma certa facilidade, também dentro deste último é possível situar outros. Se observarmos que até meados da década de 1970, Cruzeta ainda permanecia uma cidade com fortes características rurais que se revelava no seu maior contingente populacional vivendo ainda no campo e na dependência da população urbana pela produção econômica campesina, iremos admitir que o centro urbano que agora incorpora a representação da cidade com todos os seus benefícios públicos e suas facilidades de vida e como lugar comum da fonte de renda e do trabalho só será forjado nas representações sociais a partir da década de 1980, onde se observa um rápido deslocamento duma significativa parcela da população rural para os espaços citadinos e o crescimento acelerado da construção civil e do setor terciário da economia. Esta variante pode ser explicada tendo em vista as mudanças provocadas pela penetração da mecanização do campo levada a cabo pela política de modernização rural empreendida pelo governo e o setor industrial brasileiro que passou a substituir parte da mão-de-obra campesina em meados da década de 1970 e os desdobramentos provocados pela decadência da cotonicultura na região que vinha desde anos anteriores perdendo espaço no mercado nacional do produto para a região Sudeste levando à falência às fazendas de lavoura do algodão.
Festa da Colheita do município de Cruzeta. Fotografia tirada no início da década de 1970. Os desdobramentos provocados pela mecanização do campo e a decadência da cotonicultura na região iriam mudar profundamente os sentidos e representações da celebração.


Em vista disto, o patrimônio histórico-cultural não deve ser percebido como um “registro” estanque de uma época. Ao se constituir num bem patrimonial transferível, isto é, numa herança cultural que se repassa de geração a geração, ele se reveste de uma natureza dinâmica e mutável que se inscreve sempre no tempo presente, ou seja, incorpora as funções, usos, representações e sentidos que cada geração confere a ele ao longo dos tempos. Assim, para entender o conjunto de significados e funções que se atribui ao Centro Histórico de Cruzeta em seus matizes contemporâneas, torna-se imprescindível conhecer a história local, pois todo fato cultural, entendido por Santos “como uma dimensão do processo social, da vida de uma sociedade” (SANTOS, 1987. p. 37) é também uma construção histórica, ou seja, se revela no tempo e no espaço possíveis de serem identificados. 

Foi com base nestas reflexões que as visitas aos chamados “lugares de memórias” do município de Cruzeta, entre estes o Mercado Público Municipal, a Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Remédios, a casa do Fundador da Cidade, o Açude Público e a Escola Estadual Otávio Lamartine, para citar apenas os mais consagrados situados nas imediações do centro Histórico pesquisado, buscou a partir do registro e exploração destes bens, estabelecer uma conexão com os conhecimentos em construção sobre a história local, perpetrando nos alunos pesquisadores o estímulo em descobrir outras fontes e documentos que pudessem enriquecer seus conhecimentos a cerca da história do sítio pesquisado.  Para isto é que velhas fotografias antigas sobre o centro urbano, relatos e informações obtidos a partir de entrevistas com os moradores locais, pesquisas em livros e jornais foram utilizados como meio de se investigar e compreender a história local.  
Aspecto da Avenida principal Dr. Sílvio Bezerra de Melo no final da década de 1940 antes do asfaltamento das ruas contigenciais

A percepção do Centro Histórico de Cruzeta como um fato em constante mutação presente nos registros de vários alunos pesquisadores revela um dado importante para avaliarmos a compreensão da história apreendida por estes durante as oficinas de Educação Patrimonial. A relação que estes estabelecem entre presente/passado a partir do dado analisado e o esforço em situar os fatos na “lógica do tempo” é uma informação valiosa que demonstra o nível de “imaginação histórica” alcançado pelo educando. Um dos alunos pesquisadores do projeto registrou em seu caderno de campo (ficha de acompanhamento) suas impressões sobre o sítio pesquisado: “as ruas principais do centro eram calçadas como hoje em dia, as casas possuíam modelos antigos que hoje estão sendo reformadas e se tornando cada vez mais modernas, restando apenas poucas delas. Não existia saneamento básico e as pessoas sofriam muito com as muriçocas. Só a partir de 54 é que passou a existir o calçamento nas outras ruas”. Em vista disto, ao ser apropriado pelo processo educacional, o patrimônio histórico cultural identificado nos remanescentes do passado deve ser utilizado na busca pela compreensão e avaliação do modo de vida e dos problemas enfrentados pelas populações que nos antecederam esforçando-nos para entender as soluções encontradas para estes mesmos problemas ao longo dos tempos e suas permanências nos dias de hoje.
Construir um saber histórico local a partir do Centro Histórico de Cruzeta foi uma experiência enriquecedora que permitiu a muitos estudantes locais compreender as transformações históricas pelas quais vivenciaram os diversos sujeitos sociais na urdidura da história e suas permanências no tempo presente. Da fundação do povoado de Cruzeta em 1921 ao ano de execução do projeto (2008) já se passaram quase 90 anos de história em que o sítio pesquisado veio se definindo como o verdadeiro “coração da cidade” embora que suas funções e significados nos tempos de Vila (1937 a 1953) tenham se diferenciados em muitos aspectos das dos últimos tempos onde este está voltado mais às práticas comerciais e festivas e menos do lazer e da sociabilidade cotidiana.  Em seu caderno de campo um estudante pesquisador do projeto registrou sobre isto: “é no centro histórico onde fica a praça da Igreja que antes era local de encontros de familiares, jovens, amigos, vizinhos e pessoas da comunidade mas que hoje devido a  construção da praça de eventos [Praça Dr. Sílvio Bezerra de Melo localizada numa área externa do núcleo histórico principal] lá se tornou mais local de encontros amorosos por ser mais reservado. Não é mais como era antes”. 
No entanto, para ensinar a história local a partir do Centro histórico de Cruzeta foi necessário explorar uma abordagem da história que estivesse ao alcance dos níveis cognoscíveis dos alunos envolvidos no projeto, já que estes eram provenientes de séries intermediárias do nível Fundamental e Médio de ensino, e, por tanto, detentores de graus diferenciados de aprendizagens, valendo-nos, pois, dos conhecimentos prévios dos educandos e de suas experiências históricas vividas para introduzi-los no entrelaçamento de novos significados e esquemas próprios das abordagens históricas, respeitando, sempre quando possíveis, as consideração espontâneas formuladas por intermédios de tais experiências, já que como nos orienta Bittencuort “a constituição de ‘conceitos científicos’ ocorre de maneira articulada aos ‘conceitos espontâneos’”. (BITTENCOURT, 2009. p.191). 
Todavia, o desenvolvimento do projeto de Educação patrimonial e seus diálogos com a história local serviram para que os alunos envolvidos adquirissem um novo olhar sobre a sua comunidade e através deste pudessem visualizar no meio onde vivem os traços deixados por aqueles que no passado construíram e edificaram nossa cidade num contínuo processo de recriação à medida que cada geração ascendente buscou apropriar-se de seus patrimônios culturais, a partir de seus conhecimentos acumulados e de suas experiências presentes para tecer o nosso amanhã, forjando através da história a nossa Identidade Cultural. Assim “as pegadas daqueles que construíram o cotidiano do tempo que se passou são novamente repisadas pelos que fazem as trilhas do hoje, mas estas pegadas dos seres humanos do presente são marcadas pelos condicionamentos de seu tempo e os sonhos de um amanhã; são construções e reconstruções das ações humanas engendradas pela relação que o ontem, o hoje e o amanhã proporcionaram e nos fazem viver o presente, construindo o dia seguinte”. (RÊGO, Apud. MAGALHÃES JUNIOR. 2003, p. 33).

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