Luciano Aciolli R. dos Santos.
O acontecer
festivo está intimamente relacionado à predisposição do homem em conviver em sociedade. Foi
refletindo sobre isto que Lefebvre aludiu que a cidade reencontrasse a sua
função primordial que é a festa. Contudo, como bem
expressou Dantas, “a cidade é um hipertexto” (2005. p.19) que para lê-la é
necessário “navegar nos limites de seus enunciados” (Idem, p. 15), isto é,
compreender e decodificar a semântica de seus espaços com suas cores, sons, imagens,
odores, cenários, expressões fisionômicas, práticas e comportamentos. Para isto
Dantas nos orienta que “decodificar os signos urbanos” é estar atento para o
significado e impressão que cada elemento supõe em meio a uma polifonia de
imagens, sons e expressões que muitas vezes abundam em formas e insuficiências
de palavras. Nas próprias palavras da autora a cidade “(...) assemelha-se a um “campo magnético” que atrai os homens e sua
história, registrando as maneiras de pensar, agir, metamorfosear o espaço. A
fisionomia da cidade é a própria expressão daqueles que a habitam (“ou serão
habitados por ela?”), reveladora dos fantasmas, conflitos desilusões que
constroem o “emaranhado da existência humana” (2005. p. 19).
Esta qualidade que
assume a cidade nos faz pensar como a autora que o “lugar é pura subjetivação”,
mas também lócus de uma experiência cotidiana empiricamente tangível onde se
revelam as duas dimensões da existência humana: a material e a espiritual.
É neste sentido, que Matos nos diz que sobre esta cidade
“descortinam-se cidades análogas invisíveis, tecidos de memórias do passado, de
impressões recolhidas ao longo das experiências urbanas” (2002. p. 35). Em
vista disso também concordamos com Morais quando a autora observa que a vida
nos espaços citadinos assinalada pela aglomeração e o sentido de pertencimento
ao lugar se fundamenta no “espírito de luta canalizado para o enfrentamento das
situações e problemas existentes” (2005. p. 175) o que supõe pensar o local
também como “espaço de resistência”.
Festa do interior |
Autoridades do Estado do RN em vistoria às obras do açude Cruzeta em fevereiro de 1923. |
Pensar o espaço
de resistência no qual a festa tradicional se apresenta como uma de suas
expressões mais pujantes é discernir sobre o processo histórico de formação dos
lugares alicerçados nos seus elementos concretos e simbólicos, materiais e
imateriais à medida que estas noções sustentam a base sócio-espacial de suas
paisagens e articulam as relações sociais em seu interior. Para nos dar conta
deste processo na cidade de Cruzeta, iniciemos, pois, analisando a produção
deste espaço.
De acordo com o que ocorreu em outros processos de produção dos espaços urbanos na região do Seridó Potiguar onde se observa a importância crucial do papel das fazendas de criatório de gado como fator determinante na organização espacial dos futuros embriões das primeiras cidades seridoenses, o município de Cruzeta/RN, encravado na Microrregião Seridó Oriental, com área territorial de 288 km² e população de 8.333 habitantes de acordo com o censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) no ano de 2006, não pode ser entendido apenas sob ponto de vista desta lógica histórica. Como interpreta Medeiros (2005), “a cidade é uma realização humana, uma criação que vai se constituindo ao longo do processo histórico e que ganha materialização concreta diferenciada em função de determinações históricas específicas. Sendo resultado das profundas transformações pelas quais passou a sociedade, a cidade reflete as formas, características e funções de acordo com diferentes momentos históricos em seu processo de produção, apresentando-se, assim, como um espaço possível de mudanças e permanências” (p. 45). Desse modo, podemos dizer que o surgimento do povoado de Cruzeta em 1920, não foi resultado de um processo histórico cumulativo e despropositado ou mesmo da mobilização de meras forças individuais cuja lógica se perdeu na sincronia do tempo. Mas sim produto de um projeto político econômico intencionalmente direcionado e intimamente relacionado ao desejo das elites locais em desenvolver economicamente a região, projetar-se no cenário político nacional e fincar seus domínios políticos neste espaço regional.
De acordo com o que ocorreu em outros processos de produção dos espaços urbanos na região do Seridó Potiguar onde se observa a importância crucial do papel das fazendas de criatório de gado como fator determinante na organização espacial dos futuros embriões das primeiras cidades seridoenses, o município de Cruzeta/RN, encravado na Microrregião Seridó Oriental, com área territorial de 288 km² e população de 8.333 habitantes de acordo com o censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) no ano de 2006, não pode ser entendido apenas sob ponto de vista desta lógica histórica. Como interpreta Medeiros (2005), “a cidade é uma realização humana, uma criação que vai se constituindo ao longo do processo histórico e que ganha materialização concreta diferenciada em função de determinações históricas específicas. Sendo resultado das profundas transformações pelas quais passou a sociedade, a cidade reflete as formas, características e funções de acordo com diferentes momentos históricos em seu processo de produção, apresentando-se, assim, como um espaço possível de mudanças e permanências” (p. 45). Desse modo, podemos dizer que o surgimento do povoado de Cruzeta em 1920, não foi resultado de um processo histórico cumulativo e despropositado ou mesmo da mobilização de meras forças individuais cuja lógica se perdeu na sincronia do tempo. Mas sim produto de um projeto político econômico intencionalmente direcionado e intimamente relacionado ao desejo das elites locais em desenvolver economicamente a região, projetar-se no cenário político nacional e fincar seus domínios políticos neste espaço regional.
Visão geral de terreno e casas usadas como acampamento do
2o. Distrito das Obras para a construção do açude "Cruzeta".
Se a historiografia regional
consagrou a economia pecuária como fator determinante para o surgimento das
primeiras cidades na região do Seridó potiguar desenvolvidas a sombra das
fazendas de criar gado, por outro lado, não se pode entender a origem do
município de Cruzeta sem considerar a importância que a cotonicultura
representou para o surgimento desta cidade, pois conforme concordamos com Andrade
(1981), “o homem é o sujeito no processo
de produção do espaço, organizando o mesmo de acordo com os seus interesses,
com os seus objetivos, em função da realização econômica das classes dominantes
e lançando mão do capital e dos recursos técnicos de que dispõe, enquanto o meio
natural é o objeto que oferece, conforme o momento histórico, condições mais ou
menos favoráveis de utilização, face às metas a serem atingidas” (p.9-10).
Ao tratar da importância da
cultura algodoeira no processo de urbanização do sertão seridoense, Medeiros
(2005) informa que a crise na atividade pecuária desencadeada a partir da
secunda metade do século XIX em decorrência de secas prolongadas e da queda nos
preços do gado seridoense nos principais mercados consumidores elevou a
cotonicultura a um estatuto privilegiado na articulação da vida econômica
regional no final deste século e início do século XX impulsionando a ocupação
do espaço antes ocupado pela pecuária e, sobretudo, devido à alta na demanda
pelo algodão no mercado externo e interno e suas ótimas condições de adaptação
ao clima e solo da região. Todos estes aspectos conjugados cooperaram para que
esta economia fosse empregada em grande escala na região do Seridó e
contribuísse para o desenvolvimento e o fortalecimento dos núcleos urbanos, levando-os
a alcançar, posteriormente, as categorias de vila e cidade. Porém, diante deste
processo histórico regional conferido às cidades seridoenses trataremos de modo
especial ao aspecto particular auferido a fundação do povoado de Cruzeta na
segunda década do século XX.
Estudando o processo de relações
entre campo e cidade no sertão do Seridó Morais elucida
que até o final do século XIX “a fazenda
era o espaço de moradia e de trabalho do homem seridoense, que se dedicava à
lida com o gado e a semeadura da terra. Nesta sociedade em que as vivências
eram matizadas pelo apego às tradições, a estratificação social, ao mesmo tempo
em que se revelava pela concentração de terras, de bens e de poder, era
dissimulada por relações de compadrio e gratidão. Proprietário e morador
conviviam de forma aparentemente amistosa, tecendo relações em que as tensões
eram abafadas ou sequer floresciam. As vilas e cidades, sedes do poder
administrativo dos municípios, representavam o arremedo de urbano que
lentamente se formava. Nestes lugares, os moradores das cercanias urbanas
promoviam encontros, reuniões, feiras e celebrações, principalmente religiosas
e festivas. (...) A fazenda de criar, era, por excelência, o espaço do
acontecer regional” (2006. p. 80).
A citação acima serve bem para
ilustrar a conjuntura histórica em que se encontrava o território-embrião da
cidade de Cruzeta antes da fundação do povoado quando este era apenas só mais
uma fazenda engastada no território seridoense pertencente ao município de
Acari. A professora Terezinha de Jesus Medeiros Góes em seu livro “Noções de
Geografia e História do município de Cruzeta” (1975) relata que antes da
fundação do povoado de Cruzeta, as terras onde hoje está assentado o município
com este mesmo nome pertenciam ao sítio Remédios de propriedade do senhor
Joaquim José de Medeiros que herdou de herança de seus antepassados. Este
paralelamente as obras de construção de um açude público projetado pela
Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) em terreno de sua propriedade
doou suas terras para a fundação de um povoado e “edificação das residências
daqueles que passassem a povoar o lugarejo nascente” (GÓES, 1975. p. 52).
Segundo ainda a autora, as terras foram doadas ao patrimônio de uma capela que
seria construída naquela época em concomitância aos trabalhos de construção do
açude, representando, ambos, os dois marcos históricos edificados do povoado.
A tradição histórica local
enfatiza em sua narrativa o caráter acentuadamente a-histórico de seus
personagens fundadores ao desterritorializar suas ações das circunstâncias
históricas em que foram produzidas e revesti-las de um caráter genuinamente
personalístico e atemporal. São narrativas quase sempre biográficas de homens
públicos que procuram exercer na memória social a função de sua natureza
exemplar e a perpetuação dos valores morais que suas atitudes encerraram no
passado. Dessa maneira, Joaquim José de Medeiros, conclamado fundador da cidade
de Cruzeta, ainda hoje é rememorado como um homem de “espírito empreendedor”,
de “visão de futuro”, um “cidadão honrado e trabalhador, de resoluções
inquebrantáveis (...) sempre tomadas para o bem comum” (Idem, p. 84), visão de
sujeito histórico ancorada na memória dos feitos e grandes homens do passado e fundamentada "em noções extremamente restritas do que (e de quem) importa na história, e de como (e por quem) é gerada a mudança histórica" (THOMSON et. al. 2006. p. 75).
Mas se é possível identificar um
fator determinante para a origem da cidade de Cruzeta, esta não está unicamente
na “atitude generosa” de seu fundador. O historiador cruzetense Adauto Guerra Filho,
relata em seu livro “O Seridó na memória de seu povo” que já em 1920 alguns
representantes da Inspetoria de Obras Contra as Secas vieram ao Seridó à
procura de maiores informações sobre o melhor lugar para se “fazerem a planta
de uma nova cidade que estava para nascer no Seridó, a Vila dos Remédios, hoje
denominada de Cruzeta” (2001. p.144). Este dado condiz com o que Terezinha Góes
também relata em seu livro quando escreve que ainda em 1910 no governo do
Presidente Nilo Peçanha e do Governador do Estado do Rio Grande do Norte
Alberto Frederico de Albuquerque Maranhão, “teve lugar o estudo do açude [de
Cruzeta] que só dez anos mais tarde receberia despachos para a sua construção”
(GÓES, 1975. p. 52).
As tessituras destes fatos
confluem para uma conjuntura histórica que extrapola a lógica da dinâmica
local. Se tomarmos como base o contexto da época analisada poder-se-ia
descortinar neste período uma região cuja elite político-econômica local
buscava afirmar nos valores de civilidade e progresso representados pela vida
racional nas cidades, pelo desenvolvimento do comércio e da indústria e o incentivo
do ensino técnico, temas bastantes circulantes nos discursos de políticos e
intelectuais brasileiros, o caminho mais curto para se chegar à modernidade
aqui entendido em oposição a um sentimento de ruptura com o passado de atraso,
de dificuldades e de estigmas provocados pelas adversidades da natureza e da
sociedade que vinham “castigando” as populações locais desde épocas pregressas.
Esta busca pela "modernidade" do interior do país, isto é, os chamados sertões brasileiros, representa o desejo ou o esforço das elites político-econômicas nacionais em “atualizar” o Brasil com o ritmo de desenvolvimento vivenciados neste período pelas nações europeias ou pelos Estados Unidos, num momento em que os espaços territoriais conhecidos por sertões passaram a ser vistos como um fator de impedimento para o progresso da nação. A problemática das secas no semiárido nordestino era um destes fatores que mais citavam preocupações nos meios políticos, já que suas mazelas acabavam por afetar as estruturas sociecômicas de todos os extratos sociais pondo em perigo o controle social de suas populações e ameaçando o poder econômico dos grandes proprietários rurais.
A construção do Açude Público de Cruzeta foi um desdobramento desta circunstancia histórica inicial, o que não impediu que as elites locais não utilizassem deste benefício para assegurar seus privilégios e domínios na região. Assim, tendo em vista, que foi a partir da segunda década do século XX que as discussões em torno do desenvolvimento regional pautado na agricultura começaram a amadurecer no cenário político Estadual, o projeto de fundação da cidade de Cruzeta, nasce, pois, aliado aos interesses econômicos e sociais da elite política regional, quando a cotonicultura tomada como discurso político regionalista passa a ser apregoada como a “panacéia não só de todos os males do semi-árido, mas também dos Estados do norte e até da Nação [onde] o algodão seria o deus ex machina que teria a virtude de integrar o ignoto e longínquo sertão à nacionalidade” (MACÊDO, 2005. p.185-186). Em vista disto, a fundação do povoado de Cruzeta em 1920 está intimamente relacionada ao projeto de desenvolvimento regional a partir da implementação da economia algodoeira em território seridoense.
O desdobramento deste contexto não
está apenas explícito na construção do açude público concluído em 1929 onde
teria suas águas amplamente utilizadas no cultivo dos campos experimentais do
chamado algodão “mocó” fundados pelos técnicos agrícolas do Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio ainda em 1925 em suas adjacências ou
aproveitadas como substrato de irrigação no cultivo complementar de produtos
hortigranjeiros em terras de aluvião, mas também de sua localização central em
relação às principais cidades da região já que a escolha do povoado de Cruzeta
como sede da Estação Experimental do Seridó também foi pensada de forma
estratégica: localizada no coração do Seridó o trabalho de beneficiamento,
seleção e distribuição das sementes de algodão mocó realizado pela Estação
Experimental se fariam de forma mais eficiente e econômica, já que sua
localização geográfica facilitava a distribuição da “boa semente” pelas
fazendas de plantio espalhadas nos principais municípios da região dinamizando
os empreendimentos e atenuando as distâncias. A transferência das instalações
provisórias da Estação Experimental do Seridó da Fazenda Bulhões, localizada no
município de Acari para sua instalação definitiva no povoado de Cruzeta em
1930, cujo projeto remonta a 1929 do então Senador da República José Augusto
(FILHO, 2001, p. 47) de acordo com as instruções aprovadas pelo Ministério da
Agricultura desde 9 de Dezembro de 1924, reflete a influência do fator político-econômico
na fundação da cidade. Segundo Campos & Morais (2011) o objetivo da Estação
Experimental do Seridó “era realizar pesquisas visando à melhoria do algodão
arbóreo (mocó), produto básico da economia e principal item da pauta de
exportações do Seridó e do Rio Grande do Norte, entre o final do século XIX e
os anos de 1970” (p.47). Ademais são desta época os estudos do solo local que
comprovavam a existência na localidade de Cruzeta de terras de reconhecida
aptidão para a produção cotonicultora.
Tendo em vista que a cidade surgiu
sobre os auspícios da cotonicultura, não é curioso que esta marcaria
profundamente as práticas festivas e a sociabilidade cotidiana no campesinato
local. Segundo depoimento concedido pelo senhor Pedro Pereira da Silva, 51
anos, os festejos, cantorias e outros momentos de sociabilidade ocorridos no
campo eram participados de um modo geral tanto pelos moradores da cidade como
da zona rural e coincidiam com as épocas de cultivo e apanha do algodão e
também de outras lavouras:
“De uma forma
geral, todas aquelas pessoas buscavam um meio de se divertir, porque não
existia. Qualquer coisa que fosse fazer era um meio delas participarem. Naquela
época só existiam dois meios. Quais eram os meios: era a agricultura e a
pecuária. E o que era que tinha na agricultura: a agricultura era baseada no
algodão. Todo o pensamento, ou seja, todo trabalho era voltado para o algodão,
o algodão mocó, eu alcancei. Agente passava o ano todinho trabalhando só
direcionado para o algodão no mês de setembro, que era quando chegava a
produção e agente ia arrecadar, apanhar, juntar todo e vendia, entregava nos
armazéns 500 kg,
600kg, 1.000 kg,
dependendo do ano. As vezes agente plantava algodão no roçado um dia no mês. A
casa ficava no meio e o roçado era ao redor da casa mesmo, então, era cercado
de algodão e todas as lavouras. Agente plantava no inverno milho, feijão e
algodão. Agora o algodão era o principal, pois era o “ouro branco”, como
chamavam.” .” (Entrevista realizada no dia 03/11/2009 ás 20h30min)
Ao interpretar a importância do
“ouro branco” para a construção de uma identidade e discurso regional que
persiste ainda hoje, Macedo (2005) diz que apesar de hoje a paisagem seridoense
não ser mais “pontilhada pelas plumas de
algodão que branqueavam a perder de vista os campos sertanejos, (...) a
persistência do algodão no regionalismo seridoense é tal que, nos dias atuais,
embora sendo a cotonicultura apenas um residual traço estatístico no Seridó,
esse produto continua a gerar valores simbólicos. (...) Neste sentido, mesmo
ausente, o algodão ocupa um lugar no espaço como persona imagética na formação
da paisagem regionalista”. (p.167-168)
No período em que o algodão alçou
ao patamar de principal produto de cultivo nas áreas agrícolas estendidas pelas
fazendas locais entre as décadas de 1940 e 1970, a cotonicultura
passou a configurar-se no principal motor de desenvolvimento socioeconômico da
cidade instigando um relativo crescimento urbano. Este dado é relativo porque,
contraditoriamente, ao que se pensa, o cultivo algodoeiro nas fazendas de
campos cultiváveis funcionava até a década de 1970 como agente fixador de
muitas famílias de lavradores às unidades rurais. Esta realidade mudaria a
partir deste período em diante, quando o município iria conhecer um contínuo
crescimento de sua massa populacional urbana acompanhado de uma progressiva expansão urbanizadora
provocada principalmente pela decadência da cotonicultura na região e pela busca de muitas famílias de produtores rurais por melhores condições de vida na cidade.
Mas se por um lado o fator político-econômico
e geográfico foi determinante para o surgimento da cidade na segunda década do
século XX, do mesmo modo, não se pode negligenciar a importância do fator
sociocultural na construção de um sistema de relações comunitárias e a dinâmica
de integração interna entre as populações locais. Visto deste modo, podemos
tomar como marco de fundação da cidade dois acontecimentos simbólicos que
fundam e consagram o nascimento da vida cultural e social do povoado: a
celebração da primeira Missa em 24 de Outubro de 1920 em altar improvisado pelos
moradores locais e a realização da primeira feira livre campal ao redor da
primeira casa comercial
do lugarejo nesta mesma data. (GOES, 1975, p. 56)
A celebração da primeira Missa
representa no ato de fundação da comuna a sagração do território numa concepção
cosmogônica cristã dotada de um tradicional significado religioso para o homem
sertanejo seridoense, atitude implícita na obra de doação de terras do Senhor
Joaquim José de Medeiros para o patrimônio de uma capela que seria construída
no início do povoado sob a invocação de Nossa Senhora dos Remédios erigida em
1920 como padroeira do povoado. A realização da primeira feira campal encena o
nascimento do “embrião de uma nova aglomeração humana a partir da atividade
comercial”. (VEDENA, 2004. p.11). Ambos os acontecimentos, marcam o início de
um sistema de relações socioeconômicas e culturais entre o espaço urbano e o
rural que teria nas práticas festivas e nas atividades coletivas
lúdico-religiosas a expressão mais visível de uma forma de viver local passando
a agregar os “bairros rurais” ao centro urbano que começa a se formar numa
dinâmica de relações que contribuiria para o surgimento do grupo comunitário.
Embora com a fundação do povoado o
núcleo urbano passasse a agregar cada vez mais moradores, antes de 1930 este
ainda era bastante reduzido, não possuído mais que “apenas algumas rústicas
casas e a capela de Nossa Senhora dos Remédios, subordinada à Freguesia de
Nossa Senhora da Guia do Acari” (FILHO, 2001. p.128) imperando na paisagem
protourbana. A vida inicial do povoado dependia estritamente da dinâmica rural
de suas adjacências, confundindo-se, mormente, com a paisagem rural de seu
entorno, salvo o dia de feira semanal e os dias de santos principais celebrados
na capela local que faziam lembrar o significado primordial de sua origem já
que os morados dispersos pelos bairros rurais se reuniam no povoado para
festejar, socializar-se e “fazer a feira”. A feira livre se constitui num
espaço de sociabilidade local por excelência, já que seu sentido é agregar a
diversidade e misturas de atores, sonoridades, odores, desejos, cores,
performances, lugar de encontros e desencontros amorosos, de reencontros entre
amigos, vizinhos e parentes. Espaço “das
conversas, das tradições, dos encontros, das transgressões, das experiências,
das compras, vendas e permutas, das jocosidades (...) a feira se institui,
antes de tudo, em um espaço de mobilidades comerciais e sociais onde, por meio
das diversificadas dinâmicas, ergue-se uma rede de sociabilidades vivenciadas pelos
agentes sociais no âmbito dos territórios construídos” (MORAIS & ARAÚJO,
2006. p. 247)
Mas a passagem do povoado a
categoria de Vila em 1937, sinalizou uma nova dinâmica para o espaço. Agregando
um número maior de residências e moradores, a vida sociocultural da Vila de
Cruzeta gravitaria em torno da Capela com suas atividades sociorreligiosas e do
Palanque com suas festas e recreações de cunho mais profanas. As atividades sócioreligiosas
se organizavam em torno das confrarias, associações e irmandades leigas responsáveis
pela administração dos terços, novenários e capelinhas distribuídas
itinerariamente pelas residências locais, além de caminhadas de orações
(cruzadas) pelo entorno da capela. Sobre este aspecto relatou Albani Guerra in.
Campos & Morais (2011):
“No mês de maio, quando se
reverenciava Nossa Senhora havia novena diariamente, e cada noite um setor da
sociedade era encarregado de organizar as homenagens – eram os noitários. Estas
eram representadas através de cânticos, fogos, flores, quadros vivos e
ornamentação dos altares; e diferenciava de acordo com o poder aquisitivo de
cada classe social” (p.79).
Mas havia períodos do ano em que as festas na Vila recebiam um aparato todo especial e os moradores do lugarejo engalanavam suas residências e preparavam as melhores iguarias da casa para receber os parentes, amigos e visitantes provenientes do campo ou mesmos de outras cidades e redondezas. Tal era a atmosfera festiva vivenciada na ocasião da Festa de Nossa Senhora dos Remédios que ocorria no mês de Outubro de cada ano em homenagem à santa homônima que é padroeira do lugar. No período que antecedia a festa aumentava-se o movimento nas casas dos alfaiates e costureiras onde a procura pelos modistas era prática bastante corriqueira. Como relata Campos & Morais (2011), por ocasião da festa, a Vila
“(...) era acometida por certo
frenesi, que modificava a dinâmica do cotidiano. Era um corre-corre das
modistas que tinham pouco tempo para dormir, assoberbadas com a tarefa de bem
vestir a sociedade e preocupadas com a confecção dos belos trajes que seriam
estreados no decorrer da festa. Dentre as habilidosas costureiras, destacava-se
Zefinha de Lalau, famosa na arte de transformar tecidos em verdadeiras
obras-primas, deixando elegantes as senhoras e senhoritas que abrilhantavam as
festividades. Empolgadas, as donas de casa já se organizam com a finalidade de
prepararem as guloseimas que seriam degustadas pela família e pelos visitantes
que comparecessem às suas residências.”
Outro acontecimento que assinalava
o advento da “Festa-mor” na Vila era a chegada do parque de diversões nos dias
que antecediam as festividades. Em suas memórias de infância, Campos &
Morais (2011) relatam o significado e as impressões que este episódio lhe representava.
“Outro evento que movimentava a
Vila era a chegada do parque de diversões que, ao ser armado no centro urbano,
já contagiava as pessoas, ao espalhar seus ares festivos. A chegada do parque
assinalava uma realidade irrefutável: realmente, a festa já começara! O tão
esperado e querido parque era constituído de um velho e animado carrossel, um
juju (para crianças menores), algumas canoas e uma onda (grande roda que
girava, subindo e descendo). Porém, o que mais despertava interesse no parque
de diversões era o carrossel. Por não ser motorizado, era empurrado a muque,
pelo cidadão conhecido como Antonio Oião, pois tinha olhos muito grandes e
ostentava uma musculatura bastante desenvolvida. O carrossel exalava um
horrível cheiro de carbureto e óleo queimado, usados como combustíveis. Seu
interior era iluminado por enormes lamparinas abastecidas a óleo queimado. Para
abrilhantar o movimento do carrossel, no seu interior ficava um conjunto
musical, composto por uma concertina, um pandeiro e um triângulo, tocados por
Cícero Marcelino, Venceslau Duque de Boêmio e outros artistas do ramo, com o
objetivo de deixar mais animado aquele ambienta de diversão. Infelizmente, como
o cheiro exalado pelos combustíveis era desagradável, muita gente saía do
carrossel passando mal, com crises de vômito e mal-estar.
Mas, apesar de todo aquele
desconforto, o pessoal dirigia-se ao parque, a qualquer hora, especialmente no
dia da festa. Nem mesmo o calor insuportável do sol de outubro impedia a ida
das pessoas àquele delicioso ambiente que proporcionava diversão” (p.24)
Segundo ainda as autoras citadas,
na ocasião da Festa da Padroeira também era prática comum entre os moradores da
Vila fazerem a renovação exterior da paisagem urbana através da pintura das
residências e demais prédios do lugar dando ao panorama um colorido especial.
Esta prática acontecia por que “assim
como havia a preparação do espírito e a limpeza da alma, expurgando-se a
sujeira que por vezes habita os corações, também ocorria a preparação da cidade
e a limpeza dos prédios, livrando-se da sujeira que tornava feia a paisagem do
lugar” (p.23)
Mas a “festa na rua” também era um
momento de se agregar numa coletividade, de se reconhecer como sociedade e
compartilhar experiências comuns, já que nestas ocasiões “a comunidade se revitaliza,
se recria, se encontra e se vê como um todo” (FERRETTI. 2007. p.) Sobre o
aspecto social da Festa de Nossa Senhora dos Remédios, Terezinha de Medeiros
Góes, relata suas memórias em
Carta Aberta para a redação do jornal “O Cruzetense”
idealizado por ocasião do primeiro jubileu de emancipação política do município
em 1978:
“A vida social se revelava em
toda a sua exuberância nas animadas festas anuais, em outubro, realizadas no
palanque, construído para palco da FESTA-MOR. Ali, em cada ano que se seguia,
as alegorias eram mais caprichosamente idealizadas e levadas a efeito. D.
Jacinta Veras, com a casa sempre cheia de moças, era a força daquelas
demonstrações de bom gosto que atraíam a grande maioria dos seridoenses à
animada festa de outubro, em
Cruzeta. Os três últimos dias do novenário eram animados com
baile e barracas ao mesmo tempo. Na missa de dez horas, do dia da festa, o luxo
era maior e até bonitos chapéus com véus cobrindo os rostos, eram ostentados
nas cabeças vaidosas das moças e senhoras. Nas barracas, trabalhavam rapazes,
moças, crianças, senhoras. Uns eram serventes, uns estafetas, outras ciganas e
cada um ou uma, exercia uma função cuja finalidade era exclusivamente angariar
recursos para a igreja. E como era pitoresco assistir a chegada das famílias
numerosas que vinham de seus sítios ou fazendas!... Desde a ante-véspera da
festa. Elas chegavam a pés ou de cavalos. Vinham passar o tríduo da festa nas
suas casas da rua. Na igreja você encontraria,, muito bem vestidos, com a
característica que lhes era peculiar de austeridade e respeito, os considerados
patriarcas(...) No leilão, da véspera da festa, lá estavam eles, arrematando os
prêmios que na maioria eles mesmos haviam doado”.
Com base neste fragmento de narrativa a festa pode ser interpretada á luz da sociologia simmeliana que entende as práticas de sociações e interações entre os homens como formas sociais lúdicas. Momento de estar-junto e “jogar sociedade”, a festa é uma “forma” capaz de reunir conteúdos múltiplos, e destinada à promoção dos laços de sociabilidade ainda que nem sempre hamônicos. (SIMMEL 2006 Apud. LEONEL. 2009) A organização das barracas da festa que disputavam a primazia de quem angariava mais recursos para a igreja e reuniam para este artifício pessoas de ambos os sexos e de todas as idades representavam uma forma de sociação e interação lúdica de “ser com/e para com o outro” imbuído de um empenho “racional-utilitário” (granjear recursos para a igreja) que se fundamentava também num interesse “emocional-afetivo” (envolver as pessoas no jogo lúdico da festa nas brincadeiras da venda de beijos, da entrega de telegramas admirados ou jocosos, na imaginação esotérica das cartas ou da bola de cristal onde se desvendavam amores e descaminhos futuros, dentre outras formas lúdicas de sentir e viver o momento festivo). Em vista disto, Santos (2008) diz que “uma festa carrega em sua essência a força de comunicação simbólica. Aspectos como carga emocional, o lúdico, o mágico, a socialização, bem como (...) a materialização de uma fé, levam à pensa-la a partir da visão de seus próprios portadores. Visto como um acontecimento coletivo, a festa ultrapassa o sentido da comemoração e ajuda a reforçar os laços sociais e afetivos” (p.5).
Além das ocasiões festivas, outros
ambientes de sociabilidades também foram surgindo à medida que suas
necessidades iam sendo geradas. Espaços como o famoso café de Maria Augusta e o
bar de Dona Maria Texeira, um dos primeiros a surgir no centro urbano da
cidade, eram tanto frequentados pelas “gentes de má fama” como por pessoas “de
boa criação”, ainda que nestes ambientes os comportamentos estivessem
subordinados as regras e padrões sociais estabelecidos. Mas foi ainda neste
período onde passaram a existir na Vila os espaços de sociabilidades suspeitos
e repelidos pelas funções que representavam e as atividades que encerravam.
Eram os famigerados "gango", casas de
baixo meretrício que geralmente situavam-se a muitos metros de distâncias das
áreas de moradia familiar, mas que em dia de feira eram ambientes bastante
procurados e frequentados por rapazes e senhores provenientes da zona rural.
Todos estes espaços também contribuíram para que um sentimento de pertencimento
embasado nas experiências partilhadas do homem rural no ambiente urbano
servisse para gerar vínculos afetivos de identificação com o espaço da cidade,
ainda que, vez e outra esta empiria acabasse em tragédia. A memória
social registra inúmeros casos de morte e assassinato, sobretudo por
esfaqueamento envolvendo moradores rurais e urbanos nos finais de feira ou nas
“casas suspeitas” deixando revelar rixas ocultadas, amores proibidos, orgulho
ferido e imprecações que geralmente desaguavam em desordem e querelas.
Por sua vez, a vida sociocultural
no campo estava marcada pela solidariedade grupal pautada pela necessidade de
ajuda mútua, onde os vínculos de parentesco e vizinhança eram determinantes.
Sobre este aspecto, Pedro Pereira, registra em suas memórias:
“Naquela época, as primeiras
comunidades tinham aquela afinidade grande. Então o que é que acontecia: numa
casa de uma determinada pessoa matava um carneiro e aquele carneiro eles
[moradores da casa] não se preocupavam em vender. A preocupação maior deles era distribuir,
vamos dizer um pedacinho pra aquele vizinho, outro pedacinho pro outro, outro
pedacinho pro outro. Então, eles viviam com aquela harmonia, assim, de
comunidade, essa divisão de bens. (...) Outra coisa que também existia muito
forte na vizinhança era [quando] o roçado de um deles [cujo dono] (...) não
estava dando conta de limpar, então se juntava aqueles vizinhos todinhos: “hoje
nós vamos limpar o roçado de fulano”. E amanhã agente ajuntava todo mundo e ia
limpar o roçado de outro vizinho assim por diante”. (...) Lá naquela reunião ia
aparecendo de tudo. Ia aparecendo a cantoria. Iam aparecendo os versos, ia
aparecendo o casamento oculto (...), ia aparecendo várias e várias brincadeiras
culturais. (...) Então as pessoas ficavam felizes e aí dentro daquele momento
ia aparecendo o quê: o namoro. Tudo surgia daquele momento cultural.”
(Entrevista realizada no dia 03/11/2009 ás 20h30min)
Como enfatiza o depoimento acima,
a realização de festejos e momentos de sociabilidade coletiva atrelava-se ao cotidiano
da vida produtiva no campo e geralmente estavam associados a práticas de devoção
dedicas a alguma entidade católica, pois a necessidade de vencer principalmente
os desafios impostos pelo o trato com a terra e as distâncias geográficas
implicava num litígio grupal. Desse modo, a labuta extensiva e a lide coletiva
no campo suscitavam regularmente a necessidade de ocasiões de encontro onde o
trabalho muitas vezes combinava-se ao lazer expressando um modo de viver das
populações rurais e suas maneiras de relacionar-se com o ambiente de vivência e
faina. Na concepção de Santos (2008) “associada
ao trabalho, a festa seria encarada como bálsamo da lida temporal, programada a
fuga da fadiga, da opressão. É o extravasamento da vontade reprimida... Livres
de qualquer amarras, os atores da festa se sentem absortos e profundamente
envolvidos, transitando entre a exacerbação profana à glorificação religiosa”.
(p.5)
Em outras ocasiões, estes momentos
de sociabilidade assumiam uma dimensão ascendente podendo estender-se às
populações mais distantes e mesmo agregar os moradores urbanos. Assim, para a
organização destas celebrações, era comum existir nas fazendas a figura do
festeiro que se encarregava de organizar os festejos locais e agenciar em
companhia de outros assistentes quando necessários todos os seus preparativos,
podendo vir também a contar com o auxílio da vizinhança local.
Cada fazenda exercia além da função de unidade produtiva, o papel de um “bairro rural” formada inicialmente por seus trabalhadores e agregados dispersos na dimensão de seus domínios. Geralmente esta era de propriedade de uma família chefiada por um fazendeiro agropecuarista que detinha o poder de controle sobre os moradores locais, de decidir sobre os negócios e as atividades econômicas de sua propriedade rural, e ainda, interferir, nas relações socioculturais engendradas em âmbito interno e externo à fazenda.
A elevação da categoria de Vila
ao conceito de Cidade em novembro de 1953 incumbiria à localidade um sentido de
unidade territorial que antes existia apenas disperso nos laços de parentesco e
vizinhança engendrados pelas vivências das tradições festivas e dos momentos de
sociabilidade onde tanto os morados da “rua” como os habitantes do “sítio” se
reuniam para celebrar, festejar e vivenciar os dias de santo, as colheitas
propiciatórias, a feira semanal, o labor coletivo propinado nos momentos da
debulha do milho e do feijão, as ocasiões de lazer animadas pelas cantorias de
viola ou os forrós de alpendre sob a luz do lampião e da lamparina. Em vista
deste novo arranjo político-administrativo, a configuração geopolítica local
sofreria alterações em seus limites espaciais ao assumir categoria de Cidade
passando por um reenquadramento territorial onde algumas unidades rurais seriam
redistribuídas entre outras jurisdições adjacentes.
A proposta não seria recebida sem o mínimo de adaptação pelos munícipes, visto que, o novo arranjo político e espacial que se produzia necessitava de novas experiências sociais que possibilitassem a sua apropriação no nível interpessoal e subjetivo, pois a concretização de um sentimento de pertencimento passa, inicialmente, pela aceitação da condição de si e do outro. Este processo vivido tanto na dimensão do social, quanto do individual, forjaria o sentimento do ser cruzetense.
A experiência política das
populações locais com a instituição dos pleitos eleitorais na jovem cidade
proporcionaria esta nova práxis social aos novos munícipes. Os moradores de
Cruzeta que antes pertencia à jurisdição de Acari/RN embora houvesse
propriedades rurais pertencentes às jurisdições de Caicó e Jardim do Seridó
onde seus moradores e agregados participavam da mesma dinâmica interna da comunidade local -
ambas as cidades situadas nos limites territoriais do município - agora possuíam
autonomia para eleger seus próprios representantes políticos. Mas este
artifício não foi debelado sem a existência de alguma confusão interna entre
seus habitantes que vez e outra se embaraçavam quanto a qual jurisdição
pertencia demonstrando que os laços de identidade que os prendiam a um
território comum e balizava o sentido de coesão social ainda eram bastante
fluidos. Sobre isto o historiador cruzetense Walclei de Araújo Azevêdo conta em
seu livro “Fatos Pitorescos de Cruzeta” (2009), um caso bastante emblemático
que ocorreu com seu avô José Ludgero, morador no município de Cruzeta. Este
candidatando-se a vereador por aquela cidade saíra a procura de votos entre os
eleitores de alguns sítios locais (Nicolau, Genezaré, Alegre) pertencentes a jurisdição de Caicó que
utilizavam seu caminhão para transportar-se até a feira do referido município a
qual também realizava, enquanto que havia acertado com o seu “compadre”
Sebastião Araújo, também candidato, que os dos sítios de Cruzeta lhe pertenciam
por acreditar que este possuía poucos votos. No final obteve apenas três votos:
o próprio, o de sua esposa e outro de uma amiga fiel, enquanto que o amigo
conseguiu se eleger. Este fato contribui para o entendimento de que a Festa da
Colheita instituída no município de Cruzeta em 1960 com o objetivo de agregar o
homem do campo ao da cidade colaboraria para que uma nova experiência
sociopolítica se firmasse no ceio das populações rurais e urbanas, ou seja, a
de que ser cruzetense é habitar o campo e a cidade, é compartilhar de um mesmo
território simbólico comum, em que o trabalhador rural é o seu agente basilar,
já que garantia a sustentação da mesa das famílias sertanejas e a dinâmica da economia urbana, esta dependente de sua força de trabalho no campo.
Desse modo, se por um lado, o fator político foi importante para a apropriação do espaço como território de afirmação de unidade social e de pertencimento a um grupo autônomo, o festar na cidade torna-se experiência decisiva para a expressão desse pathos. A Festa da Colheita demonstra o sentido de integração social e organização política que alcançou a celebração num momento em que a comunidade cruzetense demandava afirmar a sua identidade coletiva e tornar sólidos os laços sociais e afetivos reproduzidos por meio da consciência de “pertencimento” ao grupo social.
O que a envolvia de um sentido
identitário e simbólico particular era a sua capacidade criadora e gregária de
reunir apenas em uma celebração espetáculo toda uma alegoria representativa do
cotidiano de uma comunidade sertaneja tipicamente rural, com suas danças
populares, ritmos, cânticos, sons e estilos musicais; objetos e utensílios de
trabalho cotidianos transformados em instrumentos rituais que simbolizavam a
lide do camponês com a terra e o trato com o gado nas fazendas ou mesmo o
trabalho doméstico, seus paramentos e vestimentas usuais demudadas em trajes
festivos, a gastronomia típica que compunha com pratos preparados com “grãos da
terra”, dentre outras representações.
Se a Festa de Nossa Senhora dos Remédios conferia um sentido gregário de comunidade, caracterizando-a como o espaço-tempo do (re)encontro e das trocas simbólicas e materiais, da imersão no mundo do sagrado pautado na experiência coletiva da religiosidade popular, termo utilizado aqui para caracterizar as práticas religiosas que se produz espontaneamente sem o apuro institucional da hierarquia eclesiástica, a Festa da Colheita, nasce com o sentido de reforçar e integrar os laços sociais entre o homem do campo e o da cidade a partir de uma experiência sociorreligiosa conjunta, inserindo o trabalhador rural no meio social a medida que também busca meios de orienta-lo quanto ao seu papel político na nova sociedade que surge.
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Boa artigo luciano... mas eu lhe pergunto onde vc consegui estas imagens de tempos longiquos.... por exemplo, a do açude público de cruzeta. Bom blog, vou divulga-ló no face e orkut
ResponderExcluiratt. João Paulo
Mestrando- UFPB
Bom dia João Paulo, quanto as fotos, as encontrei por acaso em um sit na internet.
ExcluirAbraços,
Luciano R.
Estou procurando conversar com pessoas idosas de Cruzeta, pois gostaria de fazer um levantamento da epoca da construção do açude e da desapropriação de terras. Sou neta de João Paulino de Araujo, conhecido como JOAOZINHO DO SALGADO, que foi embora para São Tome, em 1940. Vocês poderiam me dar alguma dica? Pretendo ir em Cruzeta brevemente. Ana Cristina de Medeiros Araujo (cariocafeliz@gmail.com)
ResponderExcluirBoa noite Ana Cristina, acho que minha tia Alexandrina Campos poderia lhe dar algumas informações a este respeito. Você pode encontrar o perfil dela no facebook e assim travar os primeiros contatos com ela.
ExcluirAbraços